Da casa espaçosa e aconchegante de meus avós
maternos, Raimundo Anastácio e Marieta, que flertava puerilmente um sisudo
serrote, em Massapê, lembro-me muito bem. Duas coisas, porém, trago ainda
mais nitidamente gravado nas retinas cansadas de meus olhos: o quintal amplo,
com pedras emergindo do solo em toda sua extensão, ocupado por uma única árvore
solitária que lhe sombreava parte considerável, onde vovô costumava guardar,
com zelo e carinho, os seus animais de montaria e de carga, bem como um tosco
jardim que olhava a cozinha, sem nenhuma timidez, de frente, no qual um
imenso pé de bogari se destacava, aromatizando a casa inteira com o seu perfume
embriagador.
De
manhãzinha, ao raiar da Alva, um exército de passarinhos tomava de assalto
os galhos retorcidos do bogari e lá ficava, num balé acrobático, incessante, a
saudar um novo dia, com si bemóis, sustenidos e trinados que
quase lhes consumiam o fôlego diminuto. Nessa bendita hora eu acordava e, da
minha rede, postada na saleta, divisava, pelas frestas da janela que dava para
o exótico jardim, a silhueta de minha avó, ofertando, solícita, aos
pequenos invasores, água, bananas-prata e goiabas, repasto este consumido num
piscar de olhos por eles.
Quando o
cheiro de café quentinho anunciava que o desjejum estava pronto, levantava-me
da rede, sem pressa alguma, despreocupada do mundo, aspirando, a plenos
pulmões, a delícia do aroma do bogari que invadia resoluto as minhas narinas,
num tropel rouco de louca cavalgada, indo esconder-se nas dobras ocultas dos
neurônios de um menino – repleto de sonhos e de ideais.
À mesa,
com seu ar bonachão e cativante, vovô contava estórias, rodeado por meus
irmãos, abraçado à minha amada Mãe – cujos olhos faiscavam diamantes de tanta
felicidade. Vovó, por sua vez, olhava-nos de forma complacente e ria de nossas
brincadeiras, atenta ao seu irascível fogão à lenha, sabedora de suas diatribes
e peraltices.
O dia
invariavelmente transcorria sem a gente se dar conta, e, lá pelas ave-marias,
à noitinha, vovô voltava de sua faina diária e mesmo cansado até os ossos ainda
encontrava ânimo para brincar conosco! Que maravilha era aquilo!
... Os
anos galoparam numa velocidade vertiginosa! Não sei para quê! Entretanto, após
quase meia eternidade, ainda sinto o perfume inconfundível das flores – brancas
e pequeninas – do majestoso pé de bogari da vovó e ainda ouço a voz doce e
pausada de meu avô – e também o riso fácil, contagiante, de meus irmãos.
... Hoje
sou um reles cavaleiro andante, destituído de toda e qualquer pompa e glória,
sem armadura alguma, a enfrentar, com as mãos nuas, moinhos de vento, na vã
tentativa de recompor sonhos perdidos no labirinto infinito da vida, onde
o Minotauro-Tempo a tudo e a todos impiedosamente devora.
... Não
há mais casa, nem bogari. Há muitos invernos, os amiguinhos alados bateram em
definitiva e insólita revoada... Meus avós – e uma flor frágil, singela,
radiosa, inesquecível e bela, Margarida, minha querida Mãe –
partiram, que pena, para a última viagem... Tudo agora é só silêncio – e
os ecos do passado calam fundos dentro de mim.
O que
fazer se nada mais reto e feliz existe? Nada! Somente lembrar-me do bogari
amigo – e da época venturosa de folguedos mil de minha meninice.
Assim, a
saudade é um pijama velho – e bom – que retiro das gavetas gastas e empoeiradas
da mente, com o coração a sair pela boca e os olhos rasos d’água, e o visto,
toda noite fria, para aquecer-me um pouco com o inextinguível fogo das doces
recordações que alumia, com sua fosforescência mágica, a negra e densa solidão
que insistentemente me sufoca e rodeia - e teima cruelmente em não querer
partir...
Avelar Santos (Professor e Escritor)