sábado, 19 de agosto de 2017

BOGARI, POR AVELAR SANTOS

Da casa espaçosa e aconchegante de meus avós maternos, Raimundo Anastácio e Marieta, que flertava puerilmente um sisudo serrote, em Massapê, lembro-me muito bem. Duas coisas, porém, trago ainda mais nitidamente gravado nas retinas cansadas de meus olhos: o quintal amplo, com pedras emergindo do solo em toda sua extensão, ocupado por uma única árvore solitária que lhe sombreava parte considerável, onde vovô costumava guardar, com zelo e carinho, os seus animais de montaria e de carga, bem como um tosco jardim que olhava a cozinha, sem nenhuma timidez, de frente, no qual um imenso pé de bogari se destacava, aromatizando a casa inteira com o seu perfume embriagador.  
De manhãzinha, ao raiar da Alva, um exército de passarinhos tomava de assalto os galhos retorcidos do bogari e lá ficava, num balé acrobático, incessante, a saudar um novo dia, com si bemóis, sustenidos e trinados que quase lhes consumiam o fôlego diminuto. Nessa bendita hora eu acordava e, da minha rede, postada na saleta, divisava, pelas frestas da janela que dava para o  exótico jardim, a silhueta de minha avó, ofertando, solícita, aos pequenos invasores, água, bananas-prata e goiabas, repasto este consumido num piscar de olhos por eles.
Quando o cheiro de café quentinho anunciava que o desjejum estava pronto, levantava-me da rede, sem pressa alguma, despreocupada do mundo, aspirando, a plenos pulmões, a delícia do aroma do bogari que invadia resoluto as minhas narinas, num tropel rouco de louca cavalgada, indo esconder-se nas dobras ocultas dos neurônios de um menino – repleto de sonhos e de ideais.
 À mesa, com seu ar bonachão e cativante, vovô contava estórias, rodeado por meus irmãos, abraçado à minha amada Mãe – cujos olhos faiscavam diamantes de tanta felicidade. Vovó, por sua vez, olhava-nos de forma complacente e ria de nossas brincadeiras, atenta ao seu irascível fogão à lenha, sabedora de suas diatribes e peraltices.
O dia invariavelmente transcorria sem a gente se dar conta, e, lá pelas ave-marias, à noitinha, vovô voltava de sua faina diária e mesmo cansado até os ossos ainda encontrava ânimo para brincar conosco! Que maravilha era aquilo!
... Os anos galoparam numa velocidade vertiginosa! Não sei para quê! Entretanto, após quase meia eternidade, ainda sinto o perfume inconfundível das flores – brancas e pequeninas – do majestoso pé de bogari da vovó e ainda ouço a voz doce e pausada de meu avô – e também o riso fácil, contagiante, de meus irmãos.
 ... Hoje sou um reles cavaleiro andante, destituído de toda e qualquer pompa e glória, sem armadura alguma, a enfrentar, com as mãos nuas, moinhos de vento, na vã tentativa de recompor sonhos perdidos no labirinto infinito da vida, onde o Minotauro-Tempo a tudo e a todos impiedosamente devora.
 ... Não há mais casa, nem bogari. Há muitos invernos, os amiguinhos alados bateram em definitiva e insólita revoada... Meus avós – e uma flor frágil, singela, radiosa, inesquecível e bela, Margarida, minha querida Mãe – partiram, que pena, para a última viagem... Tudo agora é só silêncio – e os ecos do passado calam fundos dentro de mim.
 O que fazer se nada mais reto e feliz existe? Nada! Somente lembrar-me do bogari amigo – e da época venturosa de folguedos mil de minha meninice.
 Assim, a saudade é um pijama velho – e bom – que retiro das gavetas gastas e empoeiradas da mente, com o coração a sair pela boca e os olhos rasos d’água, e o visto, toda noite fria, para aquecer-me um pouco com o inextinguível fogo das doces recordações que alumia, com sua fosforescência mágica, a negra e densa solidão que insistentemente me sufoca e rodeia - e teima cruelmente em não querer partir...
Avelar Santos (Professor e Escritor)