A cidade é um símbolo sagrado do útero da
civilização, da experiência humana recolhida na busca incessante da aproximação
maior entre as pessoas, na perspectiva de se desfrutar, com plenitude e união,
de segurança, comodidade, calor fraterno – e de paz.
Ela também representa a materialização dos nossos
sonhos, o grito de nosso eu mais profundo que anseia pelo belo, pela harmonia
das coisas, pelo encontro do passado com o presente, pelo colorido da vida.
Quando a construímos, coletivamente, ao longo dos
anos, deixamos nela não somente estruturas físicas representadas por prédios diversos,
e monumentos imponentes, mas principalmente legamos a ela nossas marcas
pessoais, nossos ideais, nossos esforços, nossos talentos - nossa alma!
Nasci na cidade do meu coração, na amada Camocim, há
60 solstícios de verão! Sou filho do mar, do vento, das dunas, dos manguezais,
dos lagos, da quietude poética de suas frias madrugadas.
Tive o privilégio de conhecê-la menina-moça, deslumbrante,
radiosa, cheia de encantos, ainda pequenina, bela e doce, vestindo-se, faceira,
às pressas, no horizonte, com suas ruas e praças de um tablado de xadrez, que
se acomodavam e se encaixavam tão bem às retinas felizes dos olhos, ensaiando
os seus primeiros passos rumo ao futuro, boiando, serena, provinciana, dia após
dia, num mundo mágico de ressoar constante de plangentes apitos, com os navios
atracando no seu cais – e com Sua Majestade Imperial, o Trem, chegando, contente,
impecável, todo finzinho de tarde à Estação.
Na cidade do meu coração, que eu trago guardada a
sete chaves, no peito, fiz do tempo um prisioneiro improvável. Por isso, posso
ainda correr com os pés descalços, pelas calçadas, buscando jacarés para tomar
um delicioso banho de chuva, e, nas manhãs repletas de Sol, falar gentilmente com
os passarinhos, no alto das goiabeiras, tecendo sem pressa o novo amanhã, tentando
ordenar cada detalhe de sua intrigante e complexa teia.
Na cidade do meu coração, no aconchego e
simplicidade do lar, que retive para sempre no baú imenso da memória, as tardes
fagueiras continuam tranquilas, onde a aventura se encontra estampada - e
vivida - nos quadros surreais dos inesquecíveis gibis, cujas páginas, cheias de
heróis e estórias fantásticas, permanecem incendiando minha imaginação, proporcionando-me
um prazer indescritível.
Na cidade do meu coração, ao cair da noite, as
ave-marias ecoam, solenes, perfumadas, pelos ares, trazendo conforto às
pessoas, especialmente aos aflitos, que buscam sofregamente o bálsamo das
bênçãos celestiais, fazendo da Fé a bússola segura que vai guiá-los pelas
veredas mais remotas, mesmo aquelas escuras e sombrias.
Sob o seu céu estrelado, de beleza sem fim,
debutaram tantos amores, tantas poesias foram desesperadamente semeadas, a
esmo, por muitos, pelo caminho, na esperança de colherem a felicidade, quanta
alegria encheu jovens corações!
Sou descendente direto do bravo povo Tremembé,
senhores do Paraíso, que um dia habitaram estas longínquas plagas, pertencente também
à linhagem de três abençoadas gerações de ferroviários, que devotaram suas
existências em servir bem às pessoas, nas simples funções que exerciam.
Por isso, certamente os meus átomos são feitos de
aço, e, nas minhas veias, ao invés de sangue comum, jorra uma substância
oleosa, o diesel, impulsionando uma potente locomotiva que carrega os vagões
pesados da saudade, cujo comboio não cessa de correr dentro de mim.
Definitivamente não sei, pelas fragilidades
próprias que as décadas vividas infelizmente nos impõem, quanto mais este
pequeno milagre continuará a acontecer comigo, permitindo-me beber o cálice de
infinitas – e boas – recordações, emocionando-me de maneira abissal.
Parabéns, Camocim!
Avelar Santos (Professor e Escritor)