O reisado era uma tradição forte em Camocim nos
saudosos anos 1970. O grupo de pessoas saia finalzinho da noite e início das
madrugadas nos meses de janeiro, pedindo donativos de porta em porta para a
festa de Reis realizada no dia 06.
A cantiga era a forma de comunicação entre os
participantes dos grupos e os donos das casas, que geralmente estava dormindo
naquela hora. As cantigas eram as mais engraçadas e criativas possíveis e o
repertório era bastante extenso. Existiam cantigas para quem colaborava e havia
cantos para quem não ajudava.
O trajeto do cortejo, composto por pessoas
vestidas de roupas coloridas portando instrumentos musicais, começava no salão
paroquial e percorria as ruas no entorno da Igreja Matriz. O quadrilátero
formado pelas ruas 24 de maio, José de Alencar, General Tibúrcio e Santos
Dumont era o preferido dos participantes, pois ficam mais próximos do início da
caminhada como também morava algumas pessoas mais abastadas da cidade naquela
época.
Quando a turma estava mais disposta, estendia o
trajeto até a rua Humaitá, Duque de Caxias e Alcindo Rocha. Os bairros da
periferia, como o Cruzeiro, Praia, Brasília, Olinda e outros, nunca foram
visitados, pelos dois motivos citados acima.
Ainda sobre as músicas, uma delas era cantada para
os moradores que não abriam a porta de jeito nenhum, os chamados sovinas,
miseráveis, mão de vaca etc. A música era esta:
“Vou me embora, vou me embora
Pois aqui não volto mais
Esta casa é maldita
Aqui mora o satanás”
Em uma noite, no ano de 1977, as pessoas não
estavam colaborando muito. Batemos em várias portas, mas poucas abriram, e as
que colaboraram não foram tão generosas. Quando já estávamos nos
preparando para retornar para nossas casas, aconteceu um fato deveras interessante
e engraçado que guardo na memória.
A lua estava clara e a porta de uma residência na
rua Santos Dumont, a conhecida rua do Sol, era a última tentativa naquela
fracassada noite. Era costume cantarmos cinco músicas antes da última, que
tanto poderia ser de agradecimento ou de descontentamento como essa que escrevi
anteriormente, pois dependia circunstâncias do momento.
Cantamos, cantamos e nada da porta ser
aberta. Quando já havíamos cantado quase a música inteira e nos
preparávamos para entoar o último verso: “Aqui mora o satanás”, no exato
momento de pronunciar a palavra ”satanás”, eis que o sonolento morador abriu a
tão sonhada porta. Dessa forma, a música ganhou uma nova versão devido a
situação inesperada.
Ficou então assim: Aqui mora o....seu Luiz.
O Zé Rocha, um dos nossos colegas e talvez o mais
gaiato, teve a coragem de falar “seu Luiz” após um silêncio provocado pelo
susto diante da presença do homem, que nos deixou boquiabertos e nos impediu de
chamá-lo de satanás. Ainda bem que surgiu aquela alma caridosa com aquela
solitária voz (depois seguida por nós) para salvar a nossa pele, pois teria
sido uma tremenda injustiça e deselegância, naquele momento, fazer essa
desfeita com a pessoa que iria nos ajudar.
Também, se a música tivesse sido cantada na versão
original e o morador tivesse ouvido, com certeza, teria havido uma debandada
geral com direito a uma tremenda correria. Porém, fomos salvos por um triz pelo
nosso corajoso colega que teve essa presença de espírito em pronunciar o nome
do Seu Luiz na hora exata e numa rapidez impressionante.
Após esse episódio, saímos da residência todos
sorridentes pela oferta vultosa, até certo ponto, e por tudo que aconteceu na
casa do Seu Luiz. Fomos ao salão paroquial onde trocamos de roupas, para em
seguida irmos para nossas residências e esperarmos pela próxima noite de
reisado.
Charles Nunes de Melo