No tempo pretérito em que ladrão possuía um nome mais prosaico e, na maioria das vezes, só roubava coisas de pequeno valor, diferentemente dos ladrões da atualidade, violentos e ousados, que atentam contra a vida humana por qualquer dá cá aquela palha, causando-nos indignação e medo, usualmente a cadeia pública de Camocim vivia às moscas, enfadando deveras o seu afável carcereiro chefe.
Os poucos gatunos existentes por essas abençoadas plagas eram bastante conhecidos de todos e, talvez, por isso mesmo, não ofereciam risco algum a ninguém, principalmente pelo simplório e repetitivo modo como costumavam agir. Afinal, no frigir dos ovos, eles se limitavam a surrupiar frutas e pequenos animais dos incontáveis quintais das vizinhanças, com destaque especial para as galinhas, a fim de saciarem a fome deles próprios e, quiçá, de maltrapilhos familiares seus, que, infelizmente, campeava lépida pelos esquecidos arredores da urbe bucólica de antanho.
Certa feita, o Zé Capote, um simpático e contumaz meliante de meia tigela de outrora, resolveu diversificar, um tantinho assim, o cardápio batido do almoço familiar dominical, pois não aguentava mais a dieta proteica, embora nutritiva e saudável, à base de caícos, a que estoicamente se submetia quase todos os dias, fruto da abnegação de alguns bons samaritanos que cotidianamente frequentavam o mercado de peixe local.
Conhecedor da cidade, como a palma encardida de sua mão, e, dos hábitos e segredos das pessoas, como somente o Vigário Paroquial era detentor de tal privilégio, botou, na cabeça, repleta de cabelos revolucionários, todavia totalmente vazia de intelecto, que faria uma visita surpresa, de cortesia, à casa do Sr. Badoca, no intuito de diminuir significativamente, deste, a despesa mensal com ração e milho destinada aos seus galináceos, dos quais ele bondosamente gostaria de levar para passear certos espécimes, notadamente os mais pesados e vistosos. Só não contava que, naquela enluarada noite, o dono da residência voltaria mais cedo para o aconchego do lar, tendo em vista que a reunião costumeira das sextas-feiras, entre amigos, voltada para um charmoso – e dispendioso – jogo de pôquer não acontecera.
Eis que vemos o Baca, como era popularmente conhecido, a passos rápidos, subindo a Rua do Sol, no sentido Norte-Sul, assobiando, baixinho, satisfeito consigo próprio em não querer esticar pernas, como fazia regularmente, pelos bares e cabarés da praia, nas horas ermas da madrugada. Urgia, bem sabia ele, mesmo ciente de que Bandeira tinha razão quando dissera: “Se queres sentir a felicidade do amor, esquece completamente a tua alma”, uma reaproximação amorosa mais profunda, com a sua consorte, que ultimamente não escondia de ninguém o infortúnio de vida em que se metera ao casar-se com o nosso desventurado burguês, cuja cama macia, ela revelara pudicamente às amigas, que, por sua vez, propalaram aos quatro ventos a intimidade de alcova do distinto casal, ele não a esquentava mais com a devida regularidade, deixando-a naturalmente confrangida com aquela inquietante situação e despertando-lhe certos calores, que imediatamente esfriava-os no recato sincero de seu coração, escudada certamente nos sábios ensinamentos maternos que tivera na juventude.
Ao aproximar-se do lar, para a desgraça do larápio, o bon vivant logo notou, vindo do amplo quintal, uma babel de mil corococós que as pedreses erguiam singularmente às estrelas, ao se depararem com as mãos calosas e ágeis do Zé Capote, que, sem cerimônia alguma, pegava-as a esmo, apalpando-as, pobrezinhas, inclusive pelos países baixos, e, de pronto, já lhes torcia o pescoço, sem nenhum remorso, poupando-lhes misericordiosamente tanto estardalhaço e desnecessária barulheira infernal.
Entrando por uma porta lateral do oitão, o Sr. Badoca, munido de uma longilínea vara de jucá, perfeita para determinadas ocasiões, deparou-se de chofre com o indesejável visitante, ajeitando, ao ombro, tranquilamente, o produto do roubo. Com a adrenalina a circular voluptuosamente na corrente sanguínea, ele arremeteu feito um feroz felino contra o invasor.
Temperado no azeite e na casca do alho de outras situações desagradáveis e deveras perigosas, similares àquela, o Zé Capote quando viu que a “parada” dera com os burros na água, largou, proferindo alto cabeludos palavrões, desses que jamais ousamos falar no dia a dia, tudo que almejava amealhar do distinto casarão, e, para desgraça sua, tentou desastradamente escalar o muro alto circundante – e escafeder-se, de vez, daquele lugar, antes que acontecesse o pior. Não adiantou! Correndo como um corisco no céu do sertão à época da invernia, o Sr. Badoca alcançou-o ainda com uma banda do corpo que teimara absurdamente a não querer ir para a liberdade da rua, dando-lhe uma tremenda traulitada, pelo meio dos lombos, desconjuntando-o todo.
Urrando de dor, o ladrão, sabe-se lá como, conseguiu milagrosamente safar-se dali, depois de apanhar mais um pouco para deixar as coisas alheias em paz, – e sumiu claudicante rumo ao Campo da Aviação onde miseravelmente morava.
Durante semanas, as galinhas e os perus da região tiveram um merecido descanso, e o Zé Capote, coitado, de molho por conta das fortes bordoadas que sofrera, pelo corpo franzino, teve que voltar, diariamente, debalde os seus lastimosos senões, a contragosto mesmo, ao supliciante e rejuvenescedor caldo de cangulo.
Avelar Santos (Professor e Escritor)