sábado, 14 de abril de 2018

UM LARÁPIO AZARADO, POR AVELAR SANTOS

No tempo pretérito em que ladrão possuía um nome mais prosaico e, na maioria das vezes, só roubava coisas de pequeno valor, diferentemente dos ladrões da atualidade, violentos e ousados, que atentam contra a vida humana por qualquer dá cá aquela palha, causando-nos indignação e medo, usualmente a cadeia pública de Camocim vivia às moscas, enfadando deveras o seu afável carcereiro chefe.
Os poucos gatunos existentes por essas abençoadas plagas eram bastante conhecidos de todos e, talvez, por isso mesmo, não ofereciam risco algum a ninguém, principalmente pelo simplório e repetitivo modo como costumavam agir. Afinal, no frigir dos ovos, eles se limitavam a surrupiar frutas e pequenos animais dos incontáveis quintais das vizinhanças, com destaque especial para as galinhas, a fim de saciarem a fome deles próprios e, quiçá, de maltrapilhos familiares seus, que, infelizmente, campeava lépida pelos esquecidos arredores da urbe bucólica de antanho.
Certa feita, o Zé Capote, um simpático e contumaz meliante de meia tigela de outrora, resolveu diversificar, um tantinho assim, o cardápio batido do almoço familiar dominical, pois não aguentava mais a dieta proteica, embora nutritiva e saudável, à base de caícos, a que estoicamente se submetia quase todos os dias, fruto da abnegação de alguns bons samaritanos que cotidianamente frequentavam o mercado de peixe local.
Conhecedor da cidade, como a palma encardida de sua mão, e, dos hábitos e segredos das pessoas, como somente o Vigário Paroquial era detentor de tal privilégio, botou, na cabeça, repleta de cabelos revolucionários, todavia totalmente vazia de intelecto, que faria uma visita surpresa, de cortesia, à casa do Sr. Badoca, no intuito de diminuir significativamente, deste, a despesa mensal com ração e milho destinada aos seus galináceos, dos quais ele bondosamente gostaria de levar para passear certos espécimes, notadamente os mais pesados e vistosos. Só não contava que, naquela enluarada noite, o dono da residência voltaria mais cedo para o aconchego do lar, tendo em vista que a reunião costumeira das sextas-feiras, entre amigos, voltada para um charmoso – e dispendioso – jogo de pôquer não acontecera.
Eis que vemos o Baca, como era popularmente conhecido, a passos rápidos, subindo a Rua do Sol, no sentido Norte-Sul, assobiando, baixinho, satisfeito consigo próprio em não querer esticar pernas, como fazia regularmente, pelos bares e cabarés da praia, nas horas ermas da madrugada. Urgia, bem sabia ele, mesmo ciente de que Bandeira tinha razão quando dissera: “Se queres sentir a felicidade do amor, esquece completamente a tua alma”, uma reaproximação amorosa mais profunda, com a sua consorte, que ultimamente não escondia de ninguém o infortúnio de vida em que se metera ao casar-se com o nosso desventurado burguês, cuja cama macia, ela revelara pudicamente às amigas, que, por sua vez, propalaram aos quatro ventos a intimidade de alcova do distinto casal, ele não a esquentava mais com a devida regularidade, deixando-a naturalmente confrangida com aquela inquietante situação e despertando-lhe certos calores, que imediatamente esfriava-os no recato sincero de seu coração, escudada certamente nos sábios ensinamentos maternos que tivera na juventude.
Ao aproximar-se do lar, para a desgraça do larápio, o bon vivant logo notou, vindo do amplo quintal, uma babel de mil corococós que as pedreses erguiam singularmente às estrelas, ao se depararem com as mãos calosas e ágeis do Zé Capote, que, sem cerimônia alguma, pegava-as a esmo, apalpando-as, pobrezinhas, inclusive pelos países baixos, e, de pronto, já lhes torcia o pescoço, sem nenhum remorso, poupando-lhes misericordiosamente tanto estardalhaço e desnecessária barulheira infernal.
Entrando por uma porta lateral do oitão, o Sr. Badoca, munido de uma longilínea vara de jucá, perfeita para determinadas ocasiões, deparou-se de chofre com o indesejável visitante, ajeitando, ao ombro, tranquilamente, o produto do roubo. Com a adrenalina a circular voluptuosamente na corrente sanguínea, ele arremeteu feito um feroz felino contra o invasor.
Temperado no azeite e na casca do alho de outras situações desagradáveis e deveras perigosas, similares àquela, o Zé Capote quando viu que a “parada” dera com os burros na água, largou, proferindo alto  cabeludos palavrões, desses que jamais ousamos falar no dia a dia, tudo que almejava amealhar do distinto casarão, e, para desgraça sua, tentou desastradamente escalar o muro alto circundante – e escafeder-se, de vez, daquele lugar, antes que acontecesse o pior. Não adiantou! Correndo como um corisco no céu do sertão à época da invernia, o Sr. Badoca alcançou-o ainda com uma banda do corpo que teimara absurdamente a não querer ir para a liberdade da rua, dando-lhe uma tremenda traulitada, pelo meio dos lombos, desconjuntando-o todo. 
Urrando de dor, o ladrão, sabe-se lá como, conseguiu milagrosamente safar-se dali, depois de apanhar mais um pouco para deixar as coisas alheias em paz, – e sumiu claudicante rumo ao Campo da Aviação onde miseravelmente morava.
Durante semanas, as galinhas e os perus da região tiveram um merecido descanso, e o Zé Capote, coitado, de molho por conta das fortes bordoadas que sofrera, pelo corpo franzino, teve que voltar, diariamente, debalde os seus lastimosos senões, a contragosto mesmo, ao supliciante e rejuvenescedor caldo de cangulo.
Avelar Santos (Professor e Escritor)