Por Adauto Gouveia Motta Júnior
Deveríamos nos chamar Planeta Água.
É, portanto, compreensível que, para seres tão inquietos como os espécimes humanos, antropoides de hábitos originalmente migratórios, essencialmente nômades, o domínio das suas movimentações sobre as porções alagadas se tornasse fundamental. Por pura necessidade, os homens sempre habitaram fragmentos de territórios contíguos aos mananciais, lacustres ou litorâneos.
Os barcos tornaram-se, assim e naturalmente, as suas primeiras “máquinas”. Suas utilizações remontam à Idade da Pedra, milhares de anos anteriores à criação de artefatos essenciais para o desenvolvimento social da espécie, como a roda ou o arado.
No início, qualquer objeto que flutuasse servia aos seus propósitos e o desenvolvimento náutico é, seguramente, o mais longo capítulo da história da humanidade.
Das rústicas pirogas, canoas feitas de troncos de árvores; passando pelos juncos egípcios e chineses, até os trirremes fenícios ou gregos, os barcos foram dotados, sempre que possível, de velas que os impulsionassem e que proporcionassem deslocamentos livres da ação da força braçal.
As primeiras embarcações a se aventurarem às longas travessias eram providas de velames. À princípio, como elemento auxiliar ao artifício dos remos. Depois, no tempo em que a hidrodinâmica ainda não era plenamente desenvolvida, as velas, quadradas, eram utilizadas nos ventos largos, a favor, que sopravam pela popa.
Com o advento das velas latinas, as naus conseguiram navegar no contravento, à bolina, em quadrantes antes impossíveis.
Os primeiros barcos equipados com estas velas foram os Dhows árabes, de origem e tempos incertos, oriundos de algum ponto do Oceano Índico entre a Índia e a África. A denominação “latina” é uma corruptela, já que o território latino se localiza em região diversa, na Europa meridional e significa, sob a ótica dos exploradores europeus que assim a batizaram, “la trina”, ou “a de três lados”; a vela triangular, precursora das Grandes Navegações e da modificação das feições e ocupações do Mundo Contemporâneo pelo homem.
Heródoto, famoso historiador grego (485-425 a.C.) relatou circum-navegações ao continente africano realizadas com Dhows ainda no tempo na Grécia Clássica, o que torna o feito português, de descobridores do Cabo da Boa Esperança, uma façanha precedida em quase dois milênios pelos intrépidos mercadores árabes.
De fato, quando, em 711, a Península Ibérica foi invadida pelos mouros (que ali permaneceram por oito séculos), utilizaram-se destes barcos. E foram as características deles que inspiraram os arquitetos navais portugueses a desenvolverem as caravelas, com as quais conquistaram boa parte do Mundo.
Os Bastardos do Rio Coreaú, aparelhados com velas latinas, são, portanto, provenientes deste milenar projeto, até aqui trazido pelos nossos colonizadores, muitos dos quais sarracenos.
Apesar de existirem em outros poucos pontos do litoral cearense, somente são assim conhecidos em Camocim. E o motivo é simples: sua vela única faz as vezes de duas. Tal qual os filhos bastardos, que tem pai e mãe, mas somente um deles os criam; ou como as limas bastardas, que possuem apenas uma fileira de ranhuras de desbaste, ao contrário das duas ranhuras das limas murças.
Também são, genericamente, chamados de Botes, por causa das suas armações: seus mastros estão localizados na posição do terço anterior do casco da embarcação, quase à proa. Barcos com estas características são classificados como “armados à bote”.
Em relação ao pano, na esteira da vela, o lado do triângulo paralelo ao casco e à água, ela é espichada com um cabo; quando nos barcos convencionais, utiliza-se uma retranca rígida.
Na sua enorme testa, a parte anterior, voltada avante, há uma longa e pesada tranca, em Camocim chamada de verga. Esta verga é atada à ponta da proa e, desta forma, elimina-se o uso de uma vela de bico, a bujarrona ou buja (ou mesmo genoa, em alguns casos), essenciais nos contraventos (ou orças) dos barcos multi-aparelhados. A valuma perfaz o lado restante do triângulo, por onde o vento se esvai. Ou escoa.
Ainda hoje Camocim possui a, muito provavelmente, maior flotilha destas embarcações em atividade do Brasil; quiçá do Mundo.
A despeito da sobrepesca local, que diminuiu, sobremaneira, a atividade e que lhes obrigam a longos deslocamentos à cata das suas presas; ou da escassez das matérias primas que compõem suas estruturas. Ou mesmo no rareamento dos artífices que as constroem ou a inevitável atual tendência aos barcos motorizados; ainda assim, estes poemas sobre as águas sobrevivem.
Eles e seus heróis condutores, marinheiros que se submetem às agruras do mar oceano, ao pélago salgado que os castigam, dias a fio e sem piedade, na homérica e constante luta contra os naturais e ferozes elementos.
Não visualizo nada mais belo, neste lugar tão formoso, do que estas naves adentrando o estuário, adernando majestosamente com fidalguia, velas ufanadas, caturrando rumo ao porto, ao lar.
O maior espetáculo proporcionado pela ação humana na Terra do Pote!