Ele não era nenhum ruminante da família dos Bovídeos como nos é dado a pensar pelo título sugerido. Não foi, também, lepidóptera ou outro inseto qualquer, embora tenha sofrido uma profunda metamorfose quando lhe retiraram a “armadura” de ônibus e lhe impuseram a carroceria de caminhão.
O Boi, a que me refiro, era o valoroso Chevrolet Gigante, Americano, fabricação de 1937, popularmente conhecido em Camocim como Boi, apelido este proveniente de sua condição de “sem-garagem” e forçado a pernoitar ao relento, no quintal de seu dono, o Sr. Pedro Rufino.
Em seus primeiros anos de trabalho, o Boi fora um ônibus pertencente à Empresa São Cristóvão, de propriedade dos Srs. Chico Fontenele e Chico Franco, composta, à época, por um pequeno número de veículos em Fortaleza. Além de outras linhas, aquela empresa fazia também o transporte conhecido como “pega-trem”, que se incumbia de transportar, de Fortaleza, os viajantes que desejavam pegar o trem em Sobral com destino a Camocim ou a Crateús, e aqueles que se deslocavam em sentido inverso, oriundos da Região Norte com destino a Fortaleza.
O “pega-trem” era um recurso indispensável, já que não existia o transporte ferroviário ligando Fortaleza a Sobral. Em uma das ações de renovação de alguns veículos da frota da empresa São Cristóvão, seus sócios-proprietários transformaram um de seus ônibus mais antigos em caminhão e o venderam ao Sr. Pedro Rufino, por dois contos e quinhentos mil réis, preço esse que foi renegociado e, posteriormente, reduzido para um conto e oitocentos mil réis, tendo em vista uma série de problemas mecânicos, apresentados pelo referido veículo, logo após a entrega.
Assim nasceu o caminhão que viria a se tornar o Boi, um dos mais representativos ícones de um passado saudoso da minha terra-natal. A transação, que culminou com a compra do Boi, aconteceu em 1940, quando os únicos mecânicos, existentes em nossa Camocim, eram os senhores Mário Monteiro e Chico Arruda.
Por duas vezes, o Boi esteve envolvido em acidentes sérios. O primeiro caso ocorreu em 1943, em um local próximo ao Boqueirão, quando mal o dia havia clareado e os ponteiros do relógio se aproximavam das seis horas da manhã.
Na ocasião, o Boi era dirigido pelo motorista Chico Mucura, de Sobral, que não teve habilidade suficiente, para superar os obstáculos dos caminhos de uma estrada primitiva. Pela primeira vez, o Boi tombou, saindo gravemente ferida uma senhora, tia do Sr. Pedro Rufino, que veio a falecer posteriormente.
O segundo acidente, envolvendo o nosso personagem, foi o mais grave, quando seguia para Barroquinha, então distrito de Camocim, transportando pessoas que pretendiam participar de um comício dos “Cara-Preta”. Transcorria o mês de agosto de 1958 e a campanha política já atingira a plenitude de sua efervescência, com Carlos Trévia, candidato dos “Cara-Preta”, e Edmundo Moreira, candidato dos “Fundo-Mole”, disputando a Prefeitura de Camocim.
O grande comício, a ser realizado em Barroquinha, atraíra o interesse de grande número de partidários da coligação PSD/PTB, que buscavam algum meio de transporte para deslocamento até o local do evento. E o Boi, uma das principais alternativas, ali estava pronto: radiador com bastante água, tanque abastecido e, ao volante, o sempre lembrado Pedro Rufino. A boléia de madeira, como sempre, foi a primeira a ser ocupada e, evidentemente, com as mulheres mais prendadas ou de maior prestígio.
Entretanto, uma multidão já tomara, também, todos os espaços da carroceria, sentada ou de pé, agarrada ao gigante, sem contar com os mais imprudentes que se escanchavam nas grades, deixando uma de suas pernas para o lado de fora. Como o perigo era evidente, o Sr. Pedro Rufino desliga o motor do caminhão e retira-se da boléia, demonstrando sua insatisfação e exigindo que parte da “carrada” de gente fosse retirada.
- Desse jeito eu não viajo. Uma parte do pessoal tem que descer, disse ele, sentando-se na calçada. O pessoal se entreolhava, alguns procuravam ainda melhor se acomodar, esperando que “os outros” descessem.
- Desde cedo que eu cheguei aqui, diziam alguns.
- Eu fui uma das primeiras a chegar, dizia outra, olhando em volta buscando uma confirmação de apoio.
Mas, como o “seu” Pedro Rufino continuava irredutível, alguns começaram a abandonar os seus minguados espaços, até que o número foi reduzido ao que parecia mais prudente. Com grande esforço, alguém girou a manivela e o motor do Boi voltou a roncar, porém, numa fração de minuto a carroceria estava, novamente, superlotada. Novo protesto do “seu” Pedro, que voltou a sentar-se na calçada, aguardando que a quantidade de passageiros fosse normalizada.
Mais de meia hora havia passado, quando os excedentes abandonaram o caminhão, fazendo com que a viagem, com destino a Barroquinha, fosse iniciada. E lá se foi o Boi, saindo da cidade e em cada esquina, por onde passava em marcha lenta, recebia, involuntariamente, mais pessoas interessadas em participar do propalado comício.
Subiam pela traseira do caminhão, sem que fossem percebidas por aqueles que viajavam na boléia. Os poucos que não conseguiam subir no caminhão em movimento ganhavam uma vaia e ficavam para trás, contudo, as vaias maiores eram oferecidas, com força total, aos distraídos “Fundo-Mole” que permaneciam nas calçadas por ocasião da passagem da turba.
E, assim, sob o sol ardente daquela tarde, o Boi ganhou a estrada de piçarra, com um peso excessivo em sua carroceria.
Após ter rodado duas léguas, aproximadamente, e alcançado o trecho pouco além da Fazenda Santa Maria, o Boi não suportou a sobrecarga e uma de suas rodas partiu-se. O Boi tombou pela segunda vez. Infelizmente, desta feita um acidente bem mais grave, no qual inúmeras pessoas saíram feridas e três tiveram suas vidas ceifadas, naquela trágica tarde de agosto, daquele ano de seca no Ceará.
Transcorridos alguns meses ou um ano, após este acidente, cicatrizadas as feridas e amenizadas as dores pelas perdas, o Boi passou por reparos e voltou a circular pelos mesmos caminhos. A fatalidade não abalou o seu carisma perante o povo de Camocim.
Ele continuou a ser visto como um símbolo de resistência e uma figura tradicional ante os olhares camocinenses. A sua origem, a sua longevidade e, principalmente, o apelido, que consolidou a sua popularidade, não permitiram que lhe fossem impregnadas as pechas de azarão ou matador.
Ainda tive a oportunidade de participar de uma significativa parcela daqueles bons tempos, vendo o velho Boi transitar pelas ruas de areia de minha pequena Camocim, sempre com sua carroceria repleta de meninos e outros desocupados, fazendo a festa de um passeio pela cidade que não tinha nenhuma pressa. Nunca o vi transportando carga alguma. Qualquer que fosse a hora em que passava pela rua ou o destino a que se propunha seguir, estava sempre transportando aqueles que faziam dele o seu maior divertimento ou a sua única alegria.
Com o passar dos tempos, os anos de desgaste e as dificuldades, cada vez maiores, para encontrar peças de reposição que se adequassem à sua “anatomia”, ficou praticamente impossível mantê-lo circulando. Até que um dia, no velório triste de uma garagem suburbana, o lendário Chevrolet Gigante 1937, popularmente conhecido como Boi, foi “esquartejado” e suas peças ou membros vendidos no “açougue” de algum mercado de ferro-velho.
O Boi não existe mais como caminhão, todavia, continua vivo na memória dos camocinenses saudosistas, quando ainda o imaginamos passando pelas ruas poeirentas de uma antiga cidadelha, tombada pelo Patrimônio Histórico de nossos corações.
Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia.
A obra, que pode ser adquirida por apenas R$ 20 reais, está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526