Ano da graça de 1969. Época em que o mundo se me desabrochava, revelando-se num fantástico nascedouro de novidades e mistérios, que iam desvendando-se, no transcorrer do dia-a-dia.
Tinha eu oito anos, vivendo nesta poética cidade litorânea, aonde há pouco tempo chegara energia elétrica (Paulo Afonso). Ainda não havia, pelo menos aqui, televisão, vídeo cassete, vídeo game, computadores, celulares, e outras tantas parafernálias da atual moderna tecnologia.
De contrapartida, Camocim oferecia um clima ameno, um mar (rio) sem poluição. A atual Praia dos Coqueiros, que hoje é um cemitério de carcaças de barcos, era na época, despoluída e própria para o banho, além do porto que funcionava a contento, e o trem de cargas e passageiros que, de tardezinha ao chegar a estação, proveniente da capital, era um verdadeiro show.
Era pois, neste mundo, esbanjando o fulgor da juventude, juntamente a puerilidade dos meus oito anos, que me vejo trancafiado nas dependências do Grupo Escolar José de Barcelos (atual Prefeitura); quando a sineta tocava a tardinha, anunciando o final das aulas, tal qual um vespeiro, a molecada corria desabaladamente rumo a porta de saída; na época, não existiam os prédios da Caixa Econômica, Fórum, bem como, a praça cimentada.
A praça logo se transformava em vários campinhos, para uma gostosa pelada. Eu comumente participava, sempre atento as horas, para não chegar em casa muito tarde; depois era passar pela caixa d’água, pois quase sempre, nesta hora (17:30hs) a mesma transbordava. Era uma verdadeira festa, ficava de calção (já vinha prevenido, por baixo da roupa), tomava um delicioso banho.
Logo em seguida, traçava meu rumo, no sentido da Vila Falcão (Rua José de Alencar), na época, era uma ruazinha estreita de terra. Eu adorava pular, saltitando de calçada em calçada, pois eram irregulares, umas altas, outras baixas, no final da vila, entrava na rua Humaitá, ao cruzar com a Rua Alcindo Rocha, existia uma abertura que adentrava-se no sentido vertical, se estendia, indo sair já quase na Rua da Independência, na qual eu residia.
Era minha predileção, utilizar-me deste atalho, chamado “Rua da Gaveta”, nome sabiamente posto, sabe-se lá por quem, talvez pela infalível sabedoria popular, quando falo sabiamente, é porque a dita rua, não era mais que uma estreita passagem, no muito, uma viela.
Dava a impressão de uma gaveta, incrustada atrevidamente entre estas nobres ruas acima citadas. A “Rua da Gaveta” foi, com certeza, a primeira favela que conheci, nem favela poder-se-ia dizer, mas sim, uma mini favela, que se estreitava até que, no final, era preciso que se passasse por dentro de um barraco para se chegar ao intento. Aquilo me encantava, e me seduzia. Não via a hora fazer este trajeto todos os dias, passando pela minha Rua da Gaveta.
Veio o progresso, trazendo no bojo, o calçamento, o alinhamento das ruas, fechando de uma vez por todas, a minha querida gaveta. Hoje, restou apenas saudade... Também, quem te mandou, gaveta pretensiosa, encaixar-te num lugar ao qual não pertencias?
Inácio Santos (Radialista, Compositor, Escritor e Presidente da Academia de Ciências, Artes e Letras de Camocim)