Olho o rio que separa Camocim da Ilha do Amor e lamento não ter palavras bonitas como os poetas têm e, assim, poder externar o que sinto frente ao deslumbre da paisagem que enche os olhos e inunda a alma.
Nenhum artista por mais sensível que seja, consegue dizer tudo do seu amor, dos seus sentimentos por Camocim, sorte dos menos favorecidos pelos dons das letras (como eu), que querem presentear, prestar tributo com uma simples homenagem e uma breve reflexão. Mas quem sabe, se com mais esforço e contemplação, eu consigo dizer sobre o que vejo!
- O sol cobre, parcialmente, o rio e as dunas, porque uma nuvem brincalhona resolveu mudar o tom das cores. Um barco desliza mansamente sobre as águas e segue rumo ao horizonte, um pássaro solitário e indeciso às vezes vai às vezes vem; duas criaturas caminham lado a lado nas areias que circundam a Ilha; a vegetação rasteira e a luz do sol refletida nas dunas e nas águas formam tapetes verdes branco – cristalinos; as pedras da cor de Jacaré lá das Barreiras, no fundo do cartão postal em que estou inserida, contornam o quadro.
Ao longe a perder de vista, as ondas altas luminosas e branquíssimas quebram, volteiam e misturam-se ao mundo de água; os mangues, com suas raízes – escoras, parecem indiferentes à depredação que avança. Este cenário de onde usufruímos brisa, lazer, alimento, lua cheia, vida e paz não é perene e esta natureza tão divina, maravilhosa, encantadora, poderá devolver a ingratidão que sofre.
As criaturas que há pouco vi de frente andando lado a lado, caminharam tanto que na minha visão, sumiram. Será que subiram e desceram as unas, entraram no Rio da Cruz ou, sobre as areias afrodisíacas quentes e macias, viraram uma só?
Ou será que se separaram e em algum ponto da Ilha estão encobertos e camuflados pelo verde e estão como eu a contemplar e refletir? O que será que eles vêem? Torço para que eles sintam a paz e a plenitude de sentimentos que paira no ar e que nada quebre o romantismo. Fico torcendo para que possamos unir nossos pensamentos e construir quem – sabe! – uma bela crônica, porque eles, com certeza, estão vendo a sua majestade, a estação ferroviária, hoje de roupagem nova, linda, vistosa, imponente, destacada no meio de tudo.
Neste momento, um barco barulhento e sem pintura macula as águas com óleo queimado e tinge o céu de fumaça negra. Um enorme esgoto encravado no paredão do balaústre vomita dejetos na água. Um idoso desce as escadarias do passatempo e, apressado, olha para todos os lados e defeca na água. Alguém passa e, displicente, joga a lata de refrigerante na água; igualmente em vários lugares, plásticos, garrafas, sacolas, sandálias – bóiam ao longo do estuário, resultante de outros maus exemplos.
O barulho de muitas vozes na recepção da atual prefeitura, outrora Estação Ferroviária, e um carro que surge na Ilha do Amor vindo talvez de Tatajuba quebram o raciocínio, diluem o encantamento e enfeiam a paisagem.
Súbito os transeuntes da Esplanada do Porto caminham apressados; ciclistas pedalam mais rápido; os pássaros já não são mais indecisos e nem solitários; as portas se fecham com estrondo; venezianas descem; ventos fortes varrem as folhas do chão e balançam as árvores; tudo está envolto em uma cor cinza, porque aquela nuvem brincalhona se uniu a outras e mais outras e fez cair um forte aguaceiro.
Agora, confinadas na recepção, as pessoas falam mais alto, o barulho aumenta e eu sinto urgência em parar com a exploração e começar a trabalhar, porque onde estou está inundado. Será a revanche da natureza? Amanhã volto, escrevo e não sinto o tempo passar.
Texto escrito por Graça Cardeal em março de 2006, na Recepção da Prefeitura Municipal de Camocim (quando funcionou na Estação Ferroviária).
Foto: Camocim Online