Na década de 70 do século XX, na loira desposada pelo sol, na Castro e Silva, reduto da boemia menor fortalezense, espremida entre um bar de alegre freguesia, e um hotel meia estrela, havia a Funerária Sono Eterno.
Naquele quadrilátero, que recendia a incenso o dia todo, seus ataúdes, de formatos diversos, e preços mais elevados que àqueles do Savoy, à mostra, na calçada, enfeiavam ainda mais a maltratada rua, dando-lhe um quê de hitchcokiana sinistralidade.
Seu proprietário era o libanês Abdul Kayatt, comerciante respeitado, sagaz como um falcão, que fizera considerável fortuna, na Terra do Sol, cuidando daquelas pessoas, desavisadas, que teimavam em pegar o trem estrelar.
Simpático, polido, de fala mansa, de sorriso franco, no rosto jovial, mesmo diante da morte, que via amiúde, Abdul jamais perdia, por um instante sequer, a fleumática postura oriental, filosofando, aqui e ali, acerca da fugacidade da existência, algo que, aliás, era exímio PHD.
Solfejando os dias como presente grandioso de Alá, mulherengo de primeira hora, jamais deixava escapar um rabo de saia de seu apurado raio de visão, mormente se a donzela tivesse certos atributos, que ele admirava, agindo, nessas ocasiões, como um solitário carcará nas brenhas do sertão.
À medida que a carruagem dos anos avançava, crescia em progressão geométrica tanto suas safadezas, dignas de constar nas páginas do Marquês de Sade, bem como sua clientela, atiçando, assim, as labaredas da fogueira da inveja de muitos.
Certa feita, o pastor Amós, que pregava, diariamente, a Palavra, na Praça do Ferreira, conclamando, sem muito êxito, os apressados transeuntes à salvação, muito embora ficasse rouco de tanto gritar, entrou, de súbito, no recinto, sendo recebido, à porta, pelo próprio dono.
Depois das formalidades, o visitante anunciou, sem alarde, nem tampouco tristeza, que o Chico do Realejo resolvera bater as botas, bestamente, naquela madrugada, após uma farra avelariana, na Barra do Ceará, acompanhado por um magote de raparigas das redondezas.
Por se tratar de um compadre, a quem muito estimava, dissera o pretenso guiador de ovelhas perdidas, aliado ao fato de ser benquisto pela família, em especial pela viúva Rosalva, mulher cheia de predicados, que ostentava uma esfuziante beleza negra, ele resolvera custear as exéquias do falecido.
Rodando o anel, no dedo médio, tique nervoso em que pressentia pegar um cliente mais abonado, o vendedor de esquifes, à meia voz, abraçando, com um gesto teatral, a caixoaria toda, indagou qual seria o mais adequado para acomodar bem o homem da gaita.
Ainda com a pergunta ressoando forte nos seus tímpanos, o pastor, pensando em agradar a Rosalva, mas sem querer gastar muito com o defunto, mediu com um olhar de lince todas as possibilidades, avaliando o valor que poderia dispender.
Enquanto o pegureiro de almas perdidas pensava um pouco, os caixões, de olhos postos nele, conversavam entre si, animados, fazendo apostas acerca de qual deles seria o escolhido da vez.
E, jogando búzios ao ar, ele apontou, sem muita convicção, para um ataúde de quinta categoria, postado no fundo da loja, escondido da vista de todos de forma proposital.
Ao perceber que não teria lucros extras, Abdul diminuiu pela metade o tratamento cerimonioso que até então dispensara ao comprador, perguntando-lhe, por fim, o endereço para a devida entrega do "presente".
Naquele fim de tarde, cercado de entes queridos, e do mui amigo pastor, que não parava de enquadrar a radiante viúva, o pobre Chico do Realejo, sem se dar conta mais de nada, foi repousar, num túmulo modesto, no Cemitério São João Batista.
Passado um mês do funeral do gaiteiro, uma casa simples, no bairro Ellery, é acordada, por um entregador, recebendo, sorridente, dois belos buquês de rosas vermelhas para a viúva Rosalva.
E a vida recomeçara, enfim, seu curso, onde lobos, por vezes, agem como cordeiros, enquanto abutres novos, que não sabem voar, almejam ser águias!
Avelar Santos (Professor e Escritor)