domingo, 5 de dezembro de 2021

"JURÉ", POR AVELAR SANTOS

Vigiado permanentemente por carnaubeiras gigantes, que se esparramam a perder de vista, ao longe, cujos leques lembram moinhos de vento, que se agitam sem jamais se cansar, orlado por matas espessas de oitizeitos, refúgio seguro dos passarinhos, que se deliciam ainda todas as manhãs com seus saborosos frutos, o Riacho Juré corre ligeiro, por entre lajedos milenares, que formam estranhos desenhos, pelos caminhos das águas, vindas dos alcantis da Serra da Ibiapaba, cuja nascente fica na Bica do Velho, em Guaraciaba do Norte, serpenteando, todo contente, até chegar à Cachoeira do Céu, em Reriutaba, cuja beleza poética enternece o coração.

Dali, ganhando mais força, na época da invernia, vai aumentando aos poucos de volume, iniciando a sua desabalada corrida, pelo sertão, tingindo tudo de verde oliva, por onde passa, irrigando plantações, trazendo, com isso, fartura ao sertanejo, saciando, tempos depois, através de sua incomparável generosidade franciscana, a sede intensa do Rio Jaibaras, sendo um de seus mais importantes afluentes.

Menino traquinas, quando se derrama pela extensa planície reriutabense, gosta de silenciar seu murmúrio de paz para ouvir, nas curvas que faz, teimosamente, nas suas andanças, o canto solene dos galos de campina e os maviosos trinados do sabiá do papo amarelo, que solfejam alegrias à luz do sol matinal, enquanto procura escorrer, sereno, pelas pedras dos baixios.

Por algumas vezes, rodeado pela família, ao lado de amigos, tive o privilégio de mergulhar nas suas dobras cristalinas, cuja leveza e frialdade nos fazem esquecer, por sublimes momentos, as agruras do mundo, tornando-nos, por divino milagre, nesse breve interregno, crianças de novo.

Certa feita, numa das minhas primeiras idas à terra dos bravos índios rerius, cuja gente simples e acolhedora sempre me tratou tão bem, desde quando tive a felicidade de escolher uma filha do lugar para ser minha esposa, fui apresentado, por um cunhado, depois de nos esbaldarmos o dia todo, no Juré, às delícias da comida caseira típica da região, no restaurante do Zoim, situado no centro da cidade, onde Monsenhor Ataíde, exemplo maior de virtude, foi pároco por tantos anos, cujo carro-chefe da cozinha da casa é uma carne de sol fritada sem pressa na manteiga da terra. Um verdadeiro manjar dos deuses!

Uma das lembranças mais enraizadas na mente daqueles longínquos dias, recém saído da vida de solteiro, é a de uma pescaria solitária, no intuito, além de fisgar alguns peixes, de abraçar demoradamente a bela paisagem, que se descortinava inteira para mim, sentado tranquilamente às margens do riacho, filmando-a, pelas retinas, sabendo que aquele instante grandioso, e paradoxalmente fugidio, em que eu me sentia como um verdadeiro paxá, talvez demorasse séculos para acontecer novamente.

E os anos voaram tão ligeiro!

Duas décadas se passaram até o inesquecível reencontro com o Juré, que reclamou, fingindo-se zangado, o porquê da minha longa ausência. Sorri ao escutar tal coisa, pois isto era uma prova inconteste que guardara boas recordações de nossa amizade juvenil.

Quando quis dizer-lhe algo, falando das trilhas por que passara, para tentar explicar-lhe a demora em voltar, ele aproximou-se um pouco mais de mim, e, num sussurro, falou que a vida tem muitas surpresas, algumas desagradáveis, mas que nunca deveríamos nos permitir fraquejar, na caminhada, nem esmorecer o ânimo, com eventuais fracassos, pois cada dia trazia para nós a certeza do amor do Criador por suas criaturas, inclusive, nós, humanos.

Fiquei sem palavras com o seu pronunciamento. Ao sair, emocionado com o que ouvira, como a despedir-me dele, passei a mão mansamente pela pedra lisa em que se encostara para falar comigo.

Somente após este gesto fraterno, parti!

Avelar Santos (Professor e Escritor)