Outubro de 1964. Vivíamos os primeiros tempos do chamado Regime Militar, período em que os militares brasileiros estavam no comando do Poder Executivo de nosso país.
O Tiro de Guerra nº 250, em Camocim, ultimava os preparativos para, dentro de 45 dias, aproximadamente, realizar a solenidade de Juramento à Bandeira, no dia 19 de novembro daquele ano, concluindo, assim, o treinamento da turma de reservistas da classe de 1945.
O sargento de Infantaria, Jacy Estrela, reuniu os atiradores e avisou que, dentro daqueles próximos 15 dias, sem data exata prevista, chegaria um oficial do Quartel General da l0ª Região Militar, sediada em Fortaleza, para inspecionar aquela turma de atiradores.
Naquela época não existia Emissora de Rádio em Camocim e a comunicação de massas era restrita ao limitado alcance dos serviços de alto-falantes que funcionavam à noite, durante três horas, apenas.
Nessas circunstâncias, e considerando que boa parte dos que serviam o Tiro de Guerra exercia alguma atividade profissional, o sargento buscou uma forma de não prejudicar, por um tempo mais elástico, o trabalho na vida civil de seus subordinados.
E com este intuito, ele convencionou que, quando o referido oficial chegasse a Camocim, ele soltaria dois foguetes tiro-canhão, espaçados entre si por um tempo de, aproximadamente, meio minuto. Esta seria a senha para que todos se apresentassem, imediatamente, na sede do Tiro de Guerra.
Alguns dias se passaram e tudo continuava na mesma. As instruções continuavam a ser ministradas nos horários programados e, ao final dos treinamentos, todos se dispersavam, por ordem do instrutor.
Não havia sinal da chegado do Oficial e a espera foi gerando uma inquietação, no seio dos recrutas, diante da expectativa de um exame dirigido por um superior hierárquico desconhecido. Inquieto, o José Alves de Sousa, atirador nº 35, resolveu pôr um fim àquela monotonia e fez, então, uma proposta ao amigo e colega atirador José Aroldo Viana, que respondia pelo número 36.
- Aroldo, vamos comprar e soltar os dois foguetes?
- Tá ficando doido, Zé Alves? É muito perigoso!
- É nada, cara, a gente compra e solta ali, no fundo do quintal da movelaria.
O José Aroldo, que trabalhava na citada movelaria, instalada na Praça Pinto Martins e bem próximo ao Tiro de Guerra, ainda resistiu um pouco às insistências do José Alves, mas, aos poucos, foi aquiescendo.
- Rapaz, isso não vai dar certo...
- Que conversa é essa! Ninguém vai saber quem foi, dizia o José Alves, ansioso pelo resultado de tamanha presepada.
José Aroldo ainda argumentou que estava sem dinheiro, mas foi vencido pela insistência do colega, que assumiu o custo financeiro da atitude extravagante. Afinal de contas, não poderia mesmo ser diferente, pois aquela dupla apreciava pregar peças nos colegas menos avisados e se deleitava com o resultado de suas traquinagens. Convencido de que não seria descoberto, o José Aroldo encarregou-se da compra dos engenhos pirotécnicos.
Foi à loja do senhor Neném Lúcio e comprou os dois foguetes tiro-canhão, sem, entretanto, dar muita importância à presença, no recinto da loja, de um cego, que esmolava pelas ruas de Camocim. O referido mendigo tinha o apelido de Radiadora, pela mania que possuía de falar muito alto. E, assim, munidos dos artefatos, que serviriam de sinalizadores, partiram para o quintal da movelaria.
A ausência do senhor João Carneiro, no estabelecimento comercial de sua propriedade, naquele meio de tarde, propiciou a efetivação do plano demoníaco. Cada um soltou um foguete, dividindo, fraternalmente, a responsabilidade pelas consequências. O fato estava consumado, restando, no entanto, a ansiedade pela repercussão que aquela atitude ousada haveria de provocar.
Fingindo estar obedecendo o sinal combinado, José Aroldo foi o primeiro atirador a chegar à sede do Tiro de Guerra, em cuja calçada o Sargento Estrela já se encontrava postado.
- Convocado nº 36 se apresentando!
Pensativo, esfregando as mãos, semblante sério, um misto de nervosismo e curiosidade, o Sargento Estrela foi enfático, logo na primeira expressão de desconfiança sobre o caso.
- Isto é obra de atirador gaiato!
E logo tratou de incumbir o próprio José Aroldo de fazer uma sondagem pelas poucas lojas de Camocim que vendiam fogos de artifício, visando descobrir quem havia adquirido foguetes, em data recente.
Por coincidência, quem mendigava, naquele instante, na calçada do Tiro de Guerra, era o “Radiadora”, o qual, ouvindo as vozes e sentindo aquela movimentação, ficou a perscrutar as trevas em sua volta, com a cabeça voltada para cima, como se olhasse para o céu, batendo leve e seguidamente a bengala no chão, buscando entender o que ali se passava.
E ainda chegou a ensaiar algum comentário, sobre alguém que havia comprado foguetes na loja do senhor Neném Lúcio, porém suas palavras não obtiveram, para sorte dos “malfeitores,” a devida atenção, até porque, a agitação e o barulho reinantes no local, prejudicaram a comunicação.
O José Aroldo logo tratou de ausentar-se dali para, aparentemente, cumprir a ordem de seu superior e, é claro, usando a sua retirada como estratégia defensiva, antes que a sensibilidade auditiva do deficiente visual o identificasse, pela voz, como o tão procurado comprador de foguetes.
Preocupado e nervoso, o José Aroldo não foi, evidentemente, em busca das informações ordenadas por seu superior hierárquico. O seu trabalho ficou restrito a solicitar, aos balconistas da loja onde adquirira os foguetes, que não confirmassem sua autoria na aquisição dos mesmos, sob pena de ele cumprir uma “bela” cadeia.
Nesse ínterim, rodeado por diversos atiradores, o sargento já se movimentava pela área comercial da Praça Pinto Martins, buscando alguma informação que levasse ao autor da façanha. E não precisou ir tão longe em sua busca, pois todos os locais e atitudes que diziam respeito ao acontecimento, giravam em torno daquela praça.
O José Aroldo já escapara de ser descoberto pelo “Radiadora” e conseguira a cumplicidade dos vendedores da loja do senhor Neném Lúcio, mas, sua sorte estava acabando. É que, do quintal vizinho ao da movelaria, cuja divisória era constituída, apenas, por uma cerca de estacas, uma senhora havia observado os movimentos suspeitos dos dois fogueteiros, inclusive a queima dos fogos, numa época, sem motivos aparentes, que justificassem o festejo.
E, no momento em que ela retornava ao seu trabalho, na loja instalada na sala frontal de sua própria residência, ouviu as indagações do dedicado sargento e resolve, então, interferir.
- Eu vi, sargento, foram dois rapazes que soltaram os foguetes no quintal da movelaria. Era um magrinho, junto com um brancoso, disse ela sem citar nomes.
Evidentemente, para quem conhecia a dupla de amigos e juntasse as peças do quebra-cabeça às outras pistas já expostas, seria fácil concluir que o magrinho era José Aroldo Viana, que tinha acesso ao quintal da movelaria, e o brancoso, o José Alves de Sousa, o outro elo de uma dupla que já tinha fama de aprontar.
Imediatamente, o experiente instrutor fixou duramente o olhar no desconfiado Aroldo Viana, convocando todos para a formatura em frente à sede do Tiro de Guerra. Nesse instante, o José Alves apresentou-se ao sargento e chamou para si a responsabilidade pelo ato de indisciplina. Contudo, as circunstâncias e a testemunha ocular deixavam clara a cumplicidade dos dois, que, além de colegas, eram grandes amigos.
Após a formatura, seguiram para o campo de futebol, onde foram receber instruções e praticar exercícios físicos. Antes, porém, da saída para o local de exercícios, o sargento Estrela, usando a amarra de nylon pendente do apito, aplicou uma chicotada no Aroldo, como forma de um silencioso recado para o que estava por vir.
Findas as instruções daquele dia, o sargento ordenou aos dois fogueteiros que se apresentassem na sede do Tiro de Guerra, às 18h, a fim de cumprirem prisão a partir do citado horário. E dispensou o restante do grupo.
O Tiro de Guerra era instalado no andar superior do antigo prédio de esquina da loja de Manoel Juarez Carneiro, em cujo térreo também funcionou, em anos passados, a loja de tecidos de Carlos Trévia, o Bar Meu Cantinho, o Cine Astória e a Farmácia Ananias, dentre outros.
O acesso a esse andar de cima era feito por uma estreita escada de madeira, que culminava em uma porta, à direita, para adentrar ao salão, de piso feito de tábuas corridas. Assim, a escada era limitada por uma porta de saída para a rua, no térreo, e uma outra, no seu limite superior, que dava acesso à sala onde aconteciam as instruções teóricas.
No horário marcado, lá estavam os dois atiradores, munidos de sacos, contendo lamparina, fósforo, cigarro, rádio portátil, água, alguma merenda, um realejo e garrafa vazia, que funcionaria como mijadouro, já que seria nos degraus daquela escada que a dupla permaneceria aprisionada durante toda a noite.
E, assim, naquela cela improvisada, os dois peraltas, resignados e nem um pouco arrependidos, passaram a sua longa noite de castigo, tocando realejo ou tentando sintonizar, entre os chiados, a Rádio Tupinambá de Sobral, mesmo sendo continuamente importunados pelas dezenas de muriçocas que sobrevoavam suas cabeças e lhe exigiam o tributo de um pouco de sangue.
Muitas horas depois, já vencidos pelo cansaço, os prisioneiros acomodaram seus corpos às formas angulosas dos degraus da escada e adormeceram, quando a madrugada se despedira e o ônibus da Viação Macaboqueira, em sua agência bem próxima dali, já embarcava os seus últimos passageiros, com viagem marcada para as cinco horas daquele novo dia.
Pela manhã, quando o sol já desfiava seus raios dourados e os estabelecimentos comerciais daquele trecho abriam suas portas, os presos foram, então, libertados pelo Sargento Estrela. Com uma das mãos aberta acima dos olhos, no intuito de fazer sombra às pupilas ainda dilatadas, os fogueteiros deixaram o cativeiro escuro, carregando os seus alfarrábios e disfarçando o sorriso cínico no rosto. Por sua vez, o Sargento Estrela falava com ironia:
- Ainda acham que é bom soltar foguetes? Isso é para vocês aprenderem.
Em torno deste cenário, além dos transeuntes, inúmeros profissionais do comércio observavam a cena, e riam, diante dos comentários sobre a aventura, a qual havia gerado o castigo aos seus autores.
Agora, em liberdade, os dois peraltas caminhavam pela calçada e entreolhavam-se, numa vontade quase incontida de liberar suas expressões irreverentes e soltar uma gargalhada.
Por mais surpreendente que pudesse parecer, após cumprirem o castigo imposto em nome da disciplina, os dois estavam visivelmente de bem com a vida e, sem dúvida alguma, convencidos de que a brincadeira havia valido a pena.
E continuaram sua caminhada, atravessaram a praça em direção ao mercado, em busca daquele balcão do Manduca do Izídio, apinhado de gente, na disputa por uma tigela do quentinho e gostoso chá-de-burro, com cuscuz-de-arroz.
Texto extraído do livro "Outros Tempos", de José Maria Trévia.
A obra, que pode ser adquirida por apenas R$ 20 reais, está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526