Na meninice, certa feita ouvi minha mãe dizer que cada ser humano possuía uma melodia única, cujas notas vibrariam em diferentes tons, e, se mergulhássemos, em nós mesmos, ouviríamos os acordes.
Canoando os anos, nas águas ligeiras do mar da vida, sob orientação da balestilha, perseguindo as estrelas, percebi que essa canção ressoava ainda mais ao fazer um gesto samaritano.
Depois, constatei, satisfeito, através do insuperável exemplo do vovô Raimundo Anastácio, homem de coração generoso, apesar de não possuir muitas posses, que esta música se cristalizava, como se fora sinfonia de Beethoven, cada vez que ele semeava o bem, seguindo, com humildade, os ensinamentos sublimes do Divino Mestre Jesus.
Certo dia, perto das ave marias, meu avô ainda estava cuidando dos seus animais de carga, no curral, quando um morador do Morgado, distante poucas léguas de Massapê, assomou à porta do oitão, montado num pangaré, de passo macio, e, ao descer da montaria, cumprimentou educadamente à minha avó, dizendo-lhe, em seguida, que gostaria de prosar um pouco com o dono da casa.
Após ouvir o recado, vovô colocou água limpa, no coche, falando com o Aroeira, seu jumento predileto, como um pai fala com uma criança, alisando seu focinho, dirigindo-se, depois, até o forasteiro.
Segurando o chapéu de palha, que não parava quieto um só instante, nas suas mãos cheias de veias azuis, o estranho, logo que avistou meu avô, fez uma leve mesura, e, sem mais demora, disse-lhe, à meia voz, que precisava da ajuda dele para poder comprar um remédio para sua filha caçula que estava doente há muitos dias.
Nesse momento, vi a asa do morcego da aflição roçar a face de vovô Anastácio por que, no dia anterior, tivera que pagar alguns fornecedores - e nada havia sobrado.
Sabendo que quem pede precisa ser atendido, vovô disse ao homem que se sentasse um pouco enquanto ia, no centro, resolver um breve assunto.
Ao voltar, certo tempo depois, de posse de determinada quantia, entregou tudo ao morgadense que, cheio de gratidão, foi embora.
Este fato, singelo, revela, entretanto, a grandeza de coração de quem se preocupa em acolher o próximo, ouvindo suas súplicas.
Quem batia à sua porta, nas horas mais incertas, jamais saiu dali sem ser atendido, por que ele fazia da partilha do pão uma benção sagrada.
Parece que estou vendo os olhos do estranho brilharem de intensa alegria, ao receber o donativo de vovô Raimundo, ciente que levaria um facho de esperança para casa .
Ah! Se os homens deixassem de ser maus e tão egoístas, transformando-se, pela força da Palavra de Deus, em novas criaturas, cessariam todas as lágrimas e tanto sofrimento neste mundo cheio de dor.
*Professor e Escritor