Por Manoel Osdemi
Cinco amigos, o nosso mar, uma canoa, uma tempestade, um naufrágio e dois sobreviventes.
Quando se pensa nessa história, a gente logo percebe um sentimento de solidariedade de alto nível que existia entre eles.
As ondas, ainda hoje, parecem vibrar ecos de mensagens de otimismo trocadas por eles durantes as 24 horas de aflição.
A aventura iniciou em Bitupitá, na praia do Arrombado, onde se deu o naufrágio e terminou em uma praia conhecida por Barra Grande, no estado do Piauí, distante 80 quilômetros de Bitupitá.
A maioria tinha idade avançada. Apenas Kêza destoava dos demais. Era considerado o caçula da turma. Todos os dias, fazendo chuva ou sol, eles saíam para pescar.
Na madrugada de terça-feira, saíram quando ainda estava escuro. Não havia outras pessoas na praia. De vez em quando , soprava uma rajada de vento, descolorindo a calmaria do horizonte.
Nesse dia o vento apresentava-se diferente. Estava muito forte, ao ponto de chamar a atenção de Damázio, o mais experiente da turma. Teve um momento que ele pensou em desistir, mas achou melhor compartilhar com o grupo sua apreensão: de que poderia surgir a qualquer instante um aguaceiro (chuva misturada com vento).
Embora, apreensivos, a maioria resolveu seguir em frente. A embarcação que navegariam era estreita e leve, chamada de canoa pelos nativos. Estava na beira da praia, presa por um fio de corda de uma fateixa, um tipo de âncora artesanal que ficava no fundo do mar. A canoa era feita de madeira tamanho médio. Damázio correu os olhos por toda a extremidade. A preocupação com o tempo chuvoso o fez redobrar as atenções com a segurança da tripulação.
Após o embarque, saíram margeando a praia, sob o comando do mestre Antônio Leôncio, até o Arrombado, onde se realizaria a pescaria.
Em alto mar, as preocupações de Damázio tornavam-se previsíveis todas as vezes que uma formação de chuva se apresentava no horizonte. E não demorou muito. A tempestade desabou. O que era pra chover em um mês, choveu em poucos minutos. Não se enxergava um palmo à frente. Era água demais. Dava a impressão de que a embarcação afundaria a qualquer momento. E não deu outra, em questão de segundos a canoa desapareceu nas profundezas do mar.
Impossibilitados de alcançarem a praia, em virtude de uma forte correnteza, deixaram-se levar pela força das águas. O objetivo era economizar o máximo de energia. Viraram-se de barriga para cima e tentaram se manter, assim, sem exigir muito esforço, utilizando-se, apenas, da experiência de muitos anos de profissão.
Já era noite.
No mar, os cinco amigos seguiram nadando com calma, acompanhando a correnteza. No silêncio, parecia haver um vago eco de suas vozes, de autoajuda, tremelicando com o balanço das ondas. A esperança deles, naquele momento, era encontrar uma embarcação que por ali passasse. Mas a cada minuto, essa vontade transformava-se em uma vaga esperança. Parecia que todos os pescadores haviam sumido. Restava, somente, a chegada da madrugada trazendo a barra do dia.
Damázio nadava na frente com Raimundo dias e Kêza. Zé Pedro e Antônio Leôncio um pouco atrás. A noite era escura. Havia um sossego de tristeza. Aqui e acolá. Damázio erguia a cabeça e através de um olhar panorâmico confirmava a presença de todos, pedindo a Deus que expulsasse todos os tubarões dali. Na véspera, ouviram uma notícia estarrecedora: a presença de um tubarão-Jaguara, o mesmo que tubarão tigre, com suas sete carreiras de dentes passeando nessa praia.
Em um desses momentos, ao olhar para trás, Damázio pressentiu a falta dos dois companheiros, Antônio Leôncio e Zé Pedro. Gritou, atrás de alguma resposta, mas não obteve nenhum resultado. Aguardaram alguns minutos. A gaivota da madrugada (pássaro marítimo) passou sobre eles, avisando-os com seu cântico, que não poderiam demorar, ali, pois era um local muito perigoso: o encontro do rio Timonha com o mar. O experiente pescador conhecia esse lugar muito bem. As ondas cresciam como rochedos, chicoteando com o vento o que encontrassem pela frente.
Avisados por Damázio, os três resolveram acelerar o nado no exato momento em que uma onda gigante se aproximou. Por um instante tiveram a sensação de que a onda desabaria sobre eles. Os três mergulharam e a onda passou por cima:
- Tchuááá – bam – brumbam.
De madrugada, após vinte horas nadando mar adentro, sentiram que se afastavam cada vez mais para longe da praia. Perceberam que a força de seus músculos estava indo embora. As ondas imensas os sacodiam distantes. Os corpos cansados negavam qualquer esforço.
A certa altura, Damázio reparou que os dois amigos estavam ficando para trás. Sentiu em seu coração que estava chegando a hora de salvar um deles, mas qual? Os dois eram seus melhores amigos. Pediu a Deus que resolvesse aquilo, porque era humanamente impossível transportar os dois até o seco. Mas não foi preciso decidir, a decisão já havia sido tomada por Raimundo dias com a justificativa de que seus filhos estavam criados, mas os do Kêza, não.
Damázio era o único dos três que apresentava melhores condições físicas. Era considerado um exímio nadador, qualidade que o tornou conhecido como “o homem peixe”. Quando Damázio ia para os currais de pesca dispensava as embarcações. Adorava nadar ao lado delas. E, assim, a vontade de Raimundo Dias foi realizada. Damázio despediu-se do amigo sem olhar para ele, não teve coragem de vê-lo ficar para trás.
De coração partido, Damázio transportou Kêza nas costas até à praia da Barra Grande, onde ficaram estendidos no chão aguardando a chegada de socorro. Eles não tinham mais força para caminhar. Cerca de três horas depois, eles foram encontrados por pescadores.
Nomes dos heróis falecidos: Raimundo Dias (Marreca), Antônio Leôncio e Zé Pedro.
Sobreviventes: Damázio e Kêza.