domingo, 16 de outubro de 2022

O GUARANI II

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

O período era de inverno, mas aquela manhã, em Camocim, era de sol, embora ainda não passasse das sete horas. Na escadinha do cais, em frente à casa de Dona Elisa Pinheiro, os marinheiros tomavam as últimas providências para a viagem no barco à vela.

As águas apresentavam, apenas, suaves ondas de preamar, mas não havia condições para o barco acostar ao cais, tendo em vista a profundidade insuficiente para o calado do Guarani II, que já se encontrava com o porão lotado com a carga de sal.

Fundeado ao largo de 20 metros, o Guarani II aguardava, com serenidade, o momento de iniciar aquela que seria sua última viagem. Ostentando cores vivas e dois enormes mastros, embalava-se, suavemente, ao sabor do tênue movimento do mar, envolto no marulho, que mais parecia uma canção de notas repetidas. Os últimos homens a embarcarem, já estavam na pequena canoa, transpondo a curta distância entre o cais e o veleiro.

As velas foram, finalmente, içadas e a âncora já repousava no convés, enquanto o Guarani II tomava o rumo de Belém, com os seis tripulantes, dentre os quais navegadores experientes e um jovem marinheiro, literalmente de primeira viagem. Esse marujo, na plenitude de seus vinte e dois anos e o mais jovem da tripulação, desde criança ficou conhecido como Manuel Piluca, apelido herdado do pai que, durante décadas, foi o canoeiro responsável pela transposição das pessoas, do cais da cidade, ao “Outro Lado”, como é denominado o lado oposto do estuário do rio que espelha Camocim.

Assim, na manhã daquela segunda-feira, 2 de maio de 1955, o jovem marujo inicia a sua primeira viagem, e o Guarani II, a sua última.

Ao cair da tarde, daquele primeiro dia, os viajantes chegaram a Chaval, onde fundearam a embarcação e pernoitaram, para prosseguir viagem no dia seguinte. Pela manhã, pouco antes da partida, um casal e seus três filhos, ainda crianças, embarcaram com destino a um dos pequenos portos do Estado do Maranhão.

O sol já declinava no horizonte, quando navegavam, ao largo da Ilha das Canárias, enquanto as crianças ainda observavam a rotina de bordo como novidade. Havia certa lentidão, nesse trecho da viagem, tendo em vista a calmaria que envolvera a pequena costa piauiense. As operações, com as velas e cordames, obrigavam aquelas três crianças a se manterem reclusas, tal o frenesi de homens em luta com a cordoalha. 

Nas horas em que o convés se encontrava menos agitado, elas se mantinham quietas, sentadas no piso e recostadas na amurada, ao lado da mãe, enquanto o pai prestava uma limitada ajuda aos tripulantes. Às vezes, o veleiro bordejava, como alternativa de compensar a escassez de ventos, cortando as ondas em curvas rápidas e curtas.

A viagem prosseguia de conformidade com o que lhes era oferecido pela natureza. Não raro, durante a escassez de ventos, realizavam medições de profundidade, até encontrarem as condições que indicassem, segundo os seus conhecimentos e vivência no mar, a presença de peixes, ao alcance da iscas. Ferravam, então, as velas e fundeavam, quando se propunham a gastar algumas horas em pescaria de anzol.

No terceiro dia de viagem, avistaram a Ilha de Santana, próximo à entrada da Baía do Tubarão, quando José Pinheiro orientou a correção do rumo, virando o leme alguns graus a bombordo, a fim de se aproximarem mais das coordenadas da Ilha de São Luís. Em meio à rotina da tarde, o marinheiro Eurico Rosa, um dos mais velhos da equipe e que se encontrava responsável pela cozinha, levou, para a mulher e as três crianças abrigadas no castelo, um pouco de farinha d’água e rapadura, acompanhadas de peixe assado, no fogareiro, que os navegantes se habituaram a chamar de fogão-de-lata.

Ao alcançarem a Ilha de São Luís, ao cair da tarde do quarto dia de viagem, fundearam e aproveitaram para descansar e recompor o que fosse necessário para, no dia seguinte, atravessarem a Baía de São Marcos e deixarem Alcântara para trás. E, assim ocorreu, pois, no dia seis de maio, passaram ao largo de Porto Rico do Maranhão e, no dia sete, à noite, o Guarani navegou, durante um bom tempo, sob o olhar luminoso do farol São João, na Ilha do Mirinzal, piscando tal e qual um atento e lendário pirilampo dos mares.

No dia seguinte, no início da tarde, adentraram a Baía de Maracaçumé, até alcançarem o município de Cândido Mendes. Nesse porto, receberam, a bordo, para acompanhá-los no trajeto a Belém, o prático João Borges da Fonseca. A estadia do Guarani foi, também, aproveitada para o reabastecimento de água potável e de gêneros alimentícios. Ali, permaneceram até a manhã do dia seguinte, quando partiram de Cândido Mendes e deixaram a Baía de Maracaçumé, rumando para a Ilha de São Jorge.

Naquele pequeno porto, ocorreu o desembarque da família, que vinha fazendo parte da viagem desde o município de Chaval. O Benedito Carlos do Nascimento, ainda um jovem de 27 anos, auxilia na retirada dos pequenos viajantes, colocando-os na segurança do trapiche. Simultaneamente, seu irmão mais velho, José Carlos do Nascimento, colabora para o desembarque dos pertences da família, os quais não passavam de uma mala, um saco de tecido amarelado - que já fora embalagem de açúcar - abarrotado de roupas e objetos pessoais, além do pequeno cesto de cipó, que a menina insiste em manter sob a sua guarda. 

O pai das crianças, homem magro e de aparência frágil, agradeceu pela ajuda e se despediu, pondo o saco na cabeça e tomando nos braços o menor dos garotos. A menina, com a inseparável peça de artesanato de cipó, inicia a caminhada, sem olhar para trás, ladeada pelo irmão mais velho e pela mãe que segura a mala com firmeza.

Assim, sob o olhar meditativo da marujada, o grupo afasta-se do veleiro, caminhando por sobre as tábuas molhadas do malcuidado trapiche da Ilha de São Jorge. Em todos os gestos e movimentos daquela cena de desembarque, havia, com certeza, a mão de Deus. Ele não permitiu que seres tão indefesos fossem submetidos à fúria da natureza, que o Guarani II ainda teria pela frente. E a viagem prosseguiu.

Com nove dias após a partida de Camocim, passaram ao largo da Baía de Gurupi, na foz do rio de mesmo nome, que faz a divisa dos Estados do Maranhão e Pará. Deixavam, assim, as águas maranhenses. No meio da tarde, divisaram, ao longe, na ponta do Cabo Gurupi, o velho Farol Apeú, parecendo um detalhe branco, fixado sobre as rochas, que recebiam o impacto das ondas branqueadas pelas espumas.

Agora, o Guarani II navegava com sete tripulantes. Todos eram homens destemidos e, em sua maioria, experientes e conhecedores da vida no mar. O dia amanhecera e o calor forte prenunciava chuvas intensas para o final daquele dia 13 de maio de 1955. 

Havia uma grande calmaria e o Guarani reunia esforços e bordejava, na tentativa de aproveitar a pouca brisa existente e prosseguir viagem. Entretanto, esses esforços foram-se tornando improdutivos e os poucos resultados não justificavam o sacrifício dos homens. Sondagens foram efetuadas para averiguação de profundidade e, ao meio-dia decidiram fundear, no Banco dos Galos, à altura de Salinópoles, no Pará.

Ao cair da tarde, o mar tornou-se mais agitado e no horizonte havia indícios de muita chuva. Fundeado, o veleiro se mantinha firme sobre as ondas, no movimento de gangorra, alternando a proa e a popa num sobe-e-desce cadenciado. No início da noite, as chuvas chegaram, acompanhadas de ventos fortes, que foram aumentando a velocidade, até que o Guarani II viu-se no meio de uma grande tempestade. E aqueles sete homens iniciaram uma luta insana, na tentativa de manter o veleiro em segurança.

As velas foram firmemente amarradas aos mastros, com as cordas enroladas em espiral; as escotilhas e a porta do castelo foram travadas e todas as demais coisas, que ainda se encontravam soltas, foram atadas à amurada. Só os homens ainda ensaiavam um aterrorizante balé, tentando manterem-se de pé, em face dos movimentos desordenados do Guarani e da massa de água que, a cada instante, era arremessada sobre o seu convés. O vento, sibilando nas enxárcias trêmulas, cada vez mais fortemente envolvia o Guarani, e a cada investida parecia assegurar que não haveria trégua. Mas, o imponente veleiro a tudo resistia. No alto da gávea, o farol a querosene já não emitia sua luz de aviso e o perigo de um naufrágio era evidente.

Trovões fortes tornavam mais aterradora aquela tempestade e, constantemente, o drama do Guarani era iluminado por relâmpagos e raios, que riscavam a escuridão dos céus. Novas ondas lavam o convés e a ordem foi dada para que parte da carga fosse atirada ao mar. Um dos homens, o Antonio Marques, tomou a iniciativa de retirar os calços que fixavam a tampa do porão, enquanto outros já se apresentavam para o árduo trabalho. Não era uma tarefa fácil, porém, em pouco tempo, muitas sacas de sal foram retiradas do porão e, ironicamente, devolvidas ao mar. Nesse momento, diante da violência da tempestade, o mastro de vante parte-se na base e é jogado ao mar, permanecendo preso ao barco pelo estai, o cabo que tinha a função de mantê-lo na vertical. Por sorte, nenhum dos homens fora atingido, contudo a confirmação da iminência do naufrágio veio com mais ondas que, impetuosamente, açoitaram o Guarani e lhe arrancaram o castelo, quase por inteiro, jogando-o ao sabor do mar revolto. Nessa enxurrada, quase todos os homens caíram ao mar, enquanto os demais abandonavam o veleiro que, praticamente, já não navegava.

Manuel Piluca e Benedito tentaram agarrar-se ao castelo, que boiava, mas foram impedidos pelas ondas que os arrastavam para rumos opostos. José Pinheiro tentava aproximar-se do castelo, que ainda flutuava, todavia, também, foi impedido da mesma forma, enquanto o prático João Borges tentava segurar-se ao mastro partido. Nada mais poderia ser feito pelo Guarani, que adernava sob os açoites da tempestade.

A última visão, que tiveram do imponente veleiro, foi a de seus instantes finais na superfície, adernado para boreste, iluminado pelos clarões que vinham dos céus. Restavam, então, para aqueles sete homens, a imensidão do mar, a tempestade e o medo dos tubarões Papa-Terra, que, segundo alguns, povoavam as águas daquela região. 

O instinto de sobrevivência fazia com que gritassem os nomes dos companheiros, conclamando-os a permanecerem juntos. Conseguiam enxergar uns aos outros, quando subiam com a onda, aproveitando para mandar palavras de incentivo e, repetidamente, insistir para que não desistissem. Eram sete homens que, agora, de forma diferente e mais desafiadora, teriam de lutar pela sobrevivência. O conhecimento dos movimentos das marés dizia-lhes que deveriam nadar, aproveitando a corrente marinha, que rumava para sudoeste, o que lhes aumentaria as chances de alcançarem uma praia. E essa terra firme teria de ser alcançada, antes do amanhecer, vez que, dentro de algumas horas, a correnteza mudaria de direção e, fatalmente, seriam levados para o alto-mar.

Entretanto, logo nos primeiros momentos, todo o grupo percebeu a dificuldade de se manter juntos, tendo em vista toda a fúria do mar encapelado e a volubilidade das ondas. Alguns ainda sentiram a proximidade de um ou dois companheiros, enquanto outros não se demoraram a pressentir o isolamento. Mas, todos continuavam agarrados às suas esperanças. Nadavam e alternavam, com descansos, sem muitas batidas de pés, amedrontados com a possibilidade da presença de tubarões. E os gritos, como única forma de comunicação, ainda cortavam a tempestade, porém, aos poucos, foram diminuindo seus retornos. E cessaram, paulatinamente, até que não mais foram ouvidos, numa insinuação silenciosa de que a maioria dos homens se dispersara.

O pior da tempestade passara e o mar apresentava-se mais calmo. O Benedito e o Manoel Piluca continuavam juntos, nadando e mantendo vivas as suas esperanças. Algumas vezes, chegavam a se afastar, mas logo buscavam uma reaproximação e uma forma qualquer de comunicação, sempre objetivando um incentivo mútuo para renovação das forças.

O naufrágio do Guarani ocorrera por volta das 20 horas do dia 13 de maio de 1955. Esse fatídico dia já terminara, pois os homens varavam aquela madrugada de medo e de esperança; nadavam e alternavam, com limitados descansos, numa luta, também, contra o tempo de mudança das correntes marinhas. Já não havia sinais de tempestade. Quando subiam, com as ondas mais altas, apuravam a vista em busca de algum sinal de terra no horizonte. Mas, tudo parecia maior do que aquilo que imaginavam: o mar parecia não ter limites e a madrugada assemelhava-se a uma eternidade. O céu estava claro e as esperanças renovavam-se a cada prece, todavia, as pernas e os braços já não enfrentavam o desafio com o mesmo vigor.

A corrente marinha ainda deslizava a favor daqueles que lutavam, há mais de cinco horas, agarrados às derradeiras forças de seus músculos dormentes. Foi, então, nesse torpor, do qual dificilmente se consegue imaginar um paralelo, que a vida surgiu à frente, em forma de dunas brancas e ondas quebrando em uma praia. Parecia uma miragem, mas as forças se multiplicaram e, após algumas centenas de braçadas, arriscaram tomar pé. Santo Deus! As areias brancas das praias da Ilha do Algodoal estavam ali, sentidas pelos pés enrugados, penetrando entre os seus dedos, e trazendo a certeza de que viveriam. Exaustos, atiraram-se de bruços sobre as terras que pertenciam ao município paraense de Maracanã e adormeceram sob a proteção da madrugada de um lugar totalmente desconhecido para eles.

O sol já se apresentava brilhante quando os três pescadores nativos caminhavam pela praia em direção aos currais de pesca, onde iriam realizar a despesca das Corvinas e Pescadas Go, durante o recuo da maré. Ao longe, avistaram os dois náufragos e logo pressentiram não se tratar de moradores da região. Aproximaram-se e postaram-se diante de dois homens fatigados e, nitidamente, desorientados.

- Somos náufragos de um barco, que afundou ontem à noite, disse o Benedito, com uma expressão de quem pede ajuda.

- Tem mais alguém? - Indaga um dos nativos, enquanto observa os desconhecidos e inicia uma sucessão de outras perguntas. Enquanto o diálogo prossegue, nova surpresa aproxima-se, incorporada a um caminheiro solitário. E todos vão ao encontro do prático João Borges, que também conseguira alcançar a salvadora praia da Ilha do Algodoal.

Pouco tempo depois, toda a vila dos pescadores sabia da ocorrência. A criançada observava os forasteiros, com curiosidade e desconfiança, mas mantinham-se por perto, como que aprovando a solidariedade dos adultos. Uma refeição foi servida aos sobreviventes do naufrágio, roupas limpas lhes foram doadas e abrigo lhes foi colocado à disposição. A vida, com certeza, os aceitara de volta!

Várias buscas foram empreendidas pelas praias da Ilha, na esperança de localizar mais algum sobrevivente do naufrágio. Infelizmente, ninguém mais foi encontrado. No dia seguinte, os três sobreviventes foram levados de barco à cidade de Maracanã, onde permaneceram durante uma semana. Posteriormente, seguiram de carona, em um caminhão, com destino a Belém, a fim de prestarem seus depoimentos e cumprirem outras formalidades legais, na Capitania dos Portos da capital paraense.

No início do mês de junho, foram liberados pelas autoridades e puderam, então, retornar à terra natal e ao reencontro de suas famílias. O prático João Borges da Fonseca seguiu com destino ao Maranhão, enquanto o Benedito Carlos do Nascimento e o Manoel Piluca, cujo verdadeiro nome é Manoel José do Nascimento, regressaram ao local de onde partiram no dia 2 de maio de 1955. Na bagagem, poucos pertences e, apenas, uma única e comovente história para ser relatada.

Na contagem final, somente aqueles três alcançaram a praia, enquanto os outros quatro tripulantes foram sepultados no majestoso túmulo do oceano. Certamente, o Rei Netuno fez as honras no cerimonial de boas-vindas, reservadas aos resolutos homens do mar.

Mais de meio século transcorreu, desde que o Guarani II pousou no fundo do oceano. No que resta dele, impregnado de ostras e outros moluscos, por onde passeiam as Corvinas e tubarões Papa-Terra, coexistirão sempre o marulho das marés camocinenses e os ventos ruidosos das tempestades noturnas, que ainda açoitam a tenebrosa e longínqua região do Banco dos Galos.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia.
A obra está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526