terça-feira, 29 de novembro de 2022

HERÓI APAGADO: 100 ANOS DO VOO PIONEIRO DE PINTO MARTINS

Por Gabriela Almeida 
(Jornal O Povo - Edição de 24/11/2022)

Em novembro de 1922 um hidroavião saía dos Estados Unidos da América (EUA) rumo a uma missão pioneira — e autenticamente perigosa: viajar entre as Américas do Norte e do Sul. Dentro do equipamento, Euclydes Pinto Martins, cearense com vocação aventurosa, atuava como copiloto sem saber que viraria herói por isso. Um herói que, 100 anos depois do feito, sobrevoa a ameaça de esquecimento.

Euclydes nasceu em Camocim, a 358 km de Fortaleza, no 15 de abril de 1892. O filho de Antônio Pinto Martins e Maria de Araújo do Carmo Martins, contudo, ficou pouco tempo em terras cearenses. Isso porque ainda criança teve de se mudar com a família para Macau (RN), onde passou o restante da infância.

No início da juventude, aos 17 anos, Martins se mudou para os Estados Unidos e no país norte-americano se formou em Engenharia Mecânica, estagiando em uma fábrica de vagões. Foi nesse período que ele conheceu Gertrudes Mc Mullan, sua primeira esposa e mãe da sua primeira filha, Ceres.

Em 1911 ele retornou pela primeira vez ao Brasil e passou a trabalhar como engenheiro em Natal (RN). No entanto, poucos anos depois sua esposa veio a falecer e ele voltou aos EUA, onde se casou com a advogada Adelaide Sulivan e teve sua segunda filha, Adelaide Lillian, em 1920. Mesmo carregando o luto em sua trajetória, o cearense não deixou de lado suas ambições e o desejo de viver.

Durante a década de 1920, Pinto Martins passou a se interessar por aeronáutica e fez um Curso de Aviação, conseguindo o brevê de piloto, documento que o autorizava a pilotar. Foi nesse período que conheceu Walter Hilton, instrutor de voo na Flórida (EUA) e um personagem importante dos feitos do pioneiro cearense "nos céus".
A viagem que transformou o camocinense em herói

Da paixão pela aviação começou a surgir no camocinense um sonho que na época parecia loucura: atravessar a América em um hidroavião, equipamento de porte pequeno. Naquele período, por volta de 1922, voar ainda era algo a ser experimentado e de riscos que poderiam ter consequências irreversíveis.

Mas, além da coragem, o cearense tinha o suporte do amigo Walter. Juntos, eles contabilizaram várias tentativas de apoio e alguns fracassos. Naquele mesmo ano, contudo, o jornal “The New York World” resolveu patrocinar a tentativa inusitada da dupla de realizar uma viagem aérea pioneira entre as Américas do Norte e do Sul.

Reportagens antigas do O POVO datam que a primeira tentativa dos aventureiros foi em agosto de 1922, em um hidroavião biplano denominado "Sampaio Correia", idealizado pelo cearense e por seu amigo norte-americano. Além da dupla, a tripulação era composta pelo mecânico John Wilshusen, o jornalista Thomas Bye e o cinegrafista Jobn Baltzel. Walter era o piloto e Martins o copiloto e navegador.

O avião partiu de Nova York (EUA)*, mas o aproximar-se de Cuba, contudo, perdeu altura na baia de Guantánamo e caiu no Mar das Antilhas, destroçando-se. Em busca da sobrevivência, o cearense e seus companheiros usaram as asas do equipamento para "flutuarem" e além de tiros para o ar fizeram sinais de S.O.S. com uma lanterna elétrica, chamando a atenção de uma embarcação americana que passava por ali.

Mesmo com o "susto", a tripulação não desistiu do voo e partiu para uma nova aventura, dessa vez em um hidro chamado "Sampaio Correia II", máquina de 28 metros de envergadura e que pesava no ar oito toneladas. Há informações de que o segundo voo ocorreu em outubro de 1922, contudo, reportagens antigas do O POVO datam que ela ocorreu em novembro daquele ano, com partida da Flórida (EUA).

Fato é que a viagem, que foi iniciada sob aplausos de uma multidão e que ganhou olhares do mundo, terminou no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1923, "após 5.678 km de um percurso com cem horas de voo interrompidas a cada instante pelos mais variados problemas".

O primeiro pouso em águas brasileiras ocorreu ainda em novembro daquele ano, e o episódio foi narrado por Pinto Martins a um repórter do Jornal O Estado do Pará, da seguinte forma: “Quando levantamos voo de Caiena – Guiana Francesa encontramos forte temporal pela proa. Rompemos o mau tempo com dificuldade, mas tivemos de procurar abrigo. Tomei a direção do aparelho (era o copiloto da viagem) e depois de reconhecer o Rio Cunani aí descemos às 3h30min. O tempo lá fora era impetuoso e ameaçador. Não nos foi possível prosseguir e passamos a noite matando mosquitos e com bastante fome, pois não contávamos interromper a rota”.

Em 12 de dezembro de 1922, o avião aportou em São Luís (MA), na praia do Caju, na atual Beira Mar da capital maranhense. Três meses depois, o veículo viria a dar nome ao clube mais tradicional do Maranhão, o Sampaio Corrêa Futebol Clube. O nome do hidro era uma homenagem a José Mattoso Sampaio Corrêa (1875–1942), ex-senador e deputado federal fluminense e que, como presidente do Aeroclube do Brasil, participou da organização do voo.

Antes de chegar ao Rio de Janeiro, Euclydes incluiu uma parada especial. Às 12h20min do dia 19 de dezembro de 1922, o hidroavião chegou a Camocim, cidade natal do aventureiro copiloto daquela missão. Para saudar o cearense, centenas de camocinenses o receberam e um banquete foi oferecido para ele. Embora o voo ainda não tivesse chegado ao fim, ali Martins se consagrou herói de Camocim e do Ceará.

Homenageado e apagado pela história

O banquete na chegada foi apenas um dos gestos que ocorreram para celebrar Pinto Martins e seu feito histórico. Ele foi também recepcionado pelo então presidente Artur Bernardes e recebeu um prêmio de 200 contos de réis (antiga moeda brasileira). O nome do cearense foi dado, na época, a "um beco" da Lapa, bairro do Rio de Janeiro, e a data do seu aniversário, 15 de abril, é celebrado em Camocim como o Dia de Pinto Martins.

A homenagem que talvez possa ter sido mais marcante ocorreu em 1952, quando o então presidente Café Filho, por meio de lei, oficializou o nome de Pinto Martins para o aeroporto de Fortaleza, que na época se chamava "Cocorote". Para o historiador Sebastião Rogério, a homenagem foi "mais do que merecida" pois o aviador "transcendeu o Ceará" ao realizar um ato "heroico, destemido e comprovando que o avião veio para ficar", principalmente em uma época onde a aviação ainda estava se firmando como transporte.

Embora tenha sido aplaudido e homenageado, o cearense foi aos poucos caindo no esquecimento popular. A escritora Rachel de Queiroz, em uma matéria escrita no O POVO em 1928, chegou a dizer: "Mas a glória é breve. Cedo, aos poucos, Pinto Martins voltava ao anonimato. O Brasil não cultiva mesmo os seus heróis". Mesmo tão longínquas, palavras fazem jus ao presente. Isso porque, em 2019, o nome Pinto Martins foi retirado do letreiro do Aeroporto de Fortaleza pela Fraport, empresa alemã que assumiu a administração do equipamento em 2018, dando continuidade às obras de reestruturação do espaço.

O nome foi substituído pela marca comercial "Fortaleza Airport" e a substituição chegou a gerar polêmica na época. De acordo com Sebastião, que é ainda professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), o nome da fachada era importante para que as pessoas olhassem e recordassem ou se questionassem quem era Pinto Martins e o que ele havia feito para o Estado.

"É preocupante (a troca de nome) porque é mais um dado em relação a essa questão da pouca memória do Ceará, em relação às faces culturais e históricas da nossa terra. É um mais um exemplo que podemos colocar na lista da falta de lembrança e cuidado com o nosso patrimônio, e nesse caso o Pinto Martins faz parte do patrimônio cearense pelo feito que ele conseguiu", destaca o docente.

Rogério lembra que o camocinense foi um nome importante para a história mundial da aviação, por ter realizado o feito que contribuiu com o avanço do transporte, em um momento de muitas expectativas sobre a aviação. "A gente tem que continuar batalhando principalmente através de educação histórica e patrimonial nas escolas pra desde pequeno as crianças saberem cuidar e preservar. Que elas cresçam sabendo respeitar nosso patrimônio, que não diz respeito só aos imóveis, mas as pessoas", destaca.

Para a família do aviador, a troca de nome no letreiro do aeroporto é uma prova do apagamento cultural do qual ele foi vítima. Armando Pinto Martins, sobrinho-neto de Pinto Martins, relembra que a história do camocinense é de superação, por ter saído do Ceará e se aventurado entres as américas com persistência, não desistindo mesmo diante de alguns fracassos e alcançando um feito inédito.

"(O apagamento) É uma questão cultural, o brasileiro não tem memória, não valoriza a memória de seus heróis (...) Essa história (do Pinto Martins) tem que ser contada nas escolas porque hoje o estudante não conhece a história. Ele sabe o que é video game, mas se você perguntar quem é Rachel de Queiroz.. (...) As pessoas vão morrendo e vão sendo enterradas não só fisicamente, mas na memória", destaca.

Armando, que diz ser o único parente do aviador que reside no Ceará atualmente, sempre que pode contribui para resgatar a memória do camocinense, participando de eventos e programas em sua homenagem. Além disso, suas duas filhas já conhecem desde pequenas a história do "herói" da família. Uma história que mesmo ameaçada de se apagar, vai se mantendo viva entre os Pinto Martins.

Em nota encaminhada ao O POVO, a Fraport reforçou que o aeroporto ainda se chama Pinto Martins, com a mudança ocorrendo apenas na fachada. "O que fizemos foi utilizar a marca 'Fortaleza Airport' para identificação visual, bem como acontece em diversos outros aeroportos no país, exemplos: GRU Airport (Guarulhos), Floripa Airport (Florianópolis) etc. Temos total respeito à cultura local e à importância do Pinto Martins para a história da aviação. Em nosso saguão há um busto em sua homenagem", destaca a concessionária.

O camocinense não presenciou metade das homenagens recebidas, pois foi encontrado morto em 12 de abril de 1924, aos 32 anos, com um tiro na cabeça. Investigações da época apontaram suicídio, mas Monteiro Lobato, no livro “Escândalo do Petróleo e do Ferro”, considerou a hipótese do cearense, que após aventura passou a trabalhar com negociações de petróleo, ter sido vítima de "poderosos lobbies". Independentemente da versão, a verdade é que morreu de forma trágica, e com o nome cada vez mais esquecido, o herói que mirando o céu trouxe os olhos do mundo para o Ceará.

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