domingo, 20 de novembro de 2022

MEU TEMPO DE MARINHA

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

Já se foram 55 anos, desde que isso tudo aconteceu.

Numa quarta-feira, manhã ensolarada do dia 13 de março de 1962, em torno de 08:00h, eu chegava à Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará, em Fortaleza, para engajar-me àquela Corporação Militar. 

A pouca bagagem contida na valise de mão indicava que, dentro em pouco, as roupas civis teriam pouco uso, substituídas pelo fardamento branco ou azul, de nossa Marinha. 

Ao saltar do ônibus, em Jacarecanga, não vi nenhuma movimentação de pessoas que caracterizasse o engajamento de, aproximadamente, trezentos jovens que haveriam de se apresentar ali, naquele dia. Aproximei-me do sentinela e fui encaminhado ao Contramestre, que informou-me sobre o adiamento da data marcada para receber os novos aprendizes. 

Eu não havia recebido a tempo o comunicado do adiamento da apresentação para dois dias depois. Entretanto, ofereceram-me a opção de não retornar para casa e engajar-me logo de vez e aguardar a chegada dos colegas da nova turma, já oficialmente batizada de Turma Delta.

Resolvi aceitar o que me haviam oferecido, preferindo não retornar à casa de minha tia Nísia, onde sempre me hospedava, em Fortaleza. Não havia nenhum aprendiz na Escola, exceto eu, que havia chegado antes do tempo. 

Havia, sim, um grupo de jovens, de origens menos favorecidas, denominados Agregados, que a Marinha acolhia e preparava-os para se submeterem aos exames do concurso de Aprendizes Marinheiros, dando-lhe a oportunidade de seguirem carreira na Marinha de Guerra do Brasil. Meus primeiros contatos foram feitos com o Agregado número 32, humilde e atencioso, e com quem aprendi as primeiras coisas sobre a vida na Marinha; algumas de suas normas rígidas; o seu Livro de Castigo, onde os superiores hierárquicos escreviam as falhas ou desobediências de seus subalternos, pelas quais teriam que responder audiência e ser comunicado de sua pena; as suas gírias, que corriam de boca em boca, multiplicando-se nos quartéis e em seus navios, muitas das quais, de pouco entendimento para aqueles que não conviviam com os homens do mar.

A Escola preparava-se para receber seus Aprendizes a partir do dia 15 de março, por conta do necessário adiamento. O alojamento não estava pronto e faltavam as lonas de seus mais de trezentos beliches. Foi-me entregue um colchão e a ordem de colocá-lo no Cassino dos Oficiais, que estava temporariamente desativado e onde dormi as duas noites seguintes.

No dia 15, no início da tarde, o Navio de Transporte de Tropas Ary Parreira atracou no Porto do Mucuripe e dele desembarcaram mais de uma centena de jovens, provenientes dos Estados do Pará e Maranhão, com destino à Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará. Ali, poderiam permanecer durante dezoito meses, caso fosse esta a sua vontade, quando então fariam o Juramento à Bandeira para servirem à Marinha de Guerra durante os seis anos seguintes.

Ainda durante os exames de seleção, para o ingresso na Escola, no final da primeira prova de conhecimentos eu saí da sala, no Liceu do Ceará, conversando com um colega. Restava-nos aguardar o resultado daquela primeira etapa, para então nos submetermos aos exames de saúde. Despedimo-nos sem comentários sobre se voltaríamos a nos ver, por ocasião das novas etapas dos exames. O seu nome era José Acioly Gonçalves, do município de Quixeré, e eu nunca poderia imaginar que ele se tornaria o maior amigo que tive na Marinha.

Assim, fui iniciando os meus primeiros dias na Escola. Durante todo o primeiro mês, chamado de Mês de Adaptação, não tínhamos o direito de sair da Escola nem mesmo aos domingos ou feriados, ou seja, não tínhamos permissão para “baixar à terra”, no linguajar da marujada. Esta expressão “baixar à terra” significava “ausentar-se do navio”, ou “deixar de estar a bordo”, haja vista que na Marinha, estar a bordo é o mesmo que estar em um navio, em um de seus quartéis ou Centros de Treinamentos.

Passado quase um mês, à tarde de um sábado, dia 14 de abril de 1962, quase adquirindo o nosso direito ao gozo de licença nos fins de semana, estávamos praticando esporte à vontade, uma modalidade de se praticar qualquer esporte, por sua livre escolha e sem a intervenção de qualquer instrutor. Eu escolhera exercitar-me nos cabos em que subíamos a alguns metros de altura, sem ajuda dos pés, ou pernas. 

Às vezes ─ e foi este o caso ─ decidíamos criar ou renovar, e disputar o maior alcance do pulo, no balançar da corda, indo cair na grama. Infelizmente, minutos depois eu estava com o antebraço esquerdo quebrado, próximo ao pulso. Não havia médico plantonista nos fins de semana e o Enfermeiro assegurou que não havia fratura no osso, embora com dores e inchaço.

No dia seguinte, domingo, na enfermaria continuavam afirmando o mesmo diagnóstico e aplicando “banho de Luz”, prosseguindo assim, com este ritual pelos dois dias seguintes. Os colegas mais próximos, embriões dos grandes amigos que ali encontrei, aconselhavam-me a consultar o médico, Capitão Sávio, tendo em vista a inchação do lugar afetado e a necessidade de uma radiografia em qualquer Hospital, tendo em vista o defeito no aparelho de Raio X, da Escola. Segui as orientações dos colegas e na quarta-feira fui encaminhado à Clínica dos Acidentados, na Rua 24 de maio, próximo à Praça José de Alencar. 

Infelizmente, mandaram-me que retornasse no dia seguinte, tendo em vista a falta de energia na Clínica. Retornei na quinta-feira, quando foi feito o procedimento de radiografia, mas não receberia o diagnóstico no mesmo dia. Mas, acreditem-me, eu só receberia na segunda-feira, tendo em vista ser, o dia seguinte, Sexta-feira da Paixão, e a Clínica só voltaria a funcionar na segunda-feira. O inchaço incomodava bastante, eu sentia dores e dormia mal. Pela indiferença demonstrada, alguém rasgara algumas páginas da Bíblia.

Mas, eu continuava resistindo, pois, naqueles tempos, eu não tinha alternativas. Na segunda-feira, eu voltei à já conhecida Clínica dos Acidentados.

Alguém coloca a radiografia diante do negatoscópio e diz com indiscreta desenvoltura:

─ O seu braço está quebrado... E bem quebrado. Deite-se, ali.

Essas expressões nunca me saíram da cabeça, pois até hoje eu desconheço a necessidade do seu uso, principalmente por um profissional da área de saúde. Aquela data representava o nono dia, após o meu acidente.

Deitei-me na cama, próxima à parede, onde havia uma alça fixada, para imobilização do braço. Dois homens, usando batas brancas, Enfermeiros ou Médicos, não sei, mas examinaram o meu braço, antes de começar o ritual. Um deles segurava minha mão pelo polegar e pelos outros dedos. E, puxava com força. O outro segurava meu antebraço, em cima da área afetada e pressionava com os polegares, para levar o osso partido ao seu devido lugar. Eu liberei um “urro”, e reagi com o outro braço, que estava livre.

─ Você vai me deixar “ajeitar” seu braço ou quer ficar aleijado? Falou, encarando-me, o que usava os polegares como instrumento de tortura.

Eu baixei o olhar, e deixei entender que optaria pela primeira alternativa, mas ainda tentei, em vão, um argumento:

─ Mas, desse jeito? Não tem nenhum anestésico, para aliviar essa dor?

─ Não, é desse jeito, mesmo, respondeu ele, secamente.

Sem responder, baixei o olhar e, conscientemente, eu me deixei imobilizar. Eu me convencera que somente imobilizado eu teria força para suportar aquilo. O “dono dos polegares de alicate” chamara mais dois de seus “auxiliares”, orientando-os:

─ Imobilize o braço dele, e apontou para meu braço direito. E falou para o outro, que aguardava instruções:

─ Segure as pernas dele.

A tudo eu ouvia, passivamente, e observava a movimentação. O último auxiliar, no extremo da cama, colocara minhas pernas embaixo de seus braços, deixando-as totalmente imobilizadas. Eu não vencera a dor, apenas vencera o medo; eu não estava vencido, apenas convencido de que teria de volta, o meu braço são. E, por tudo isso, eu dou graças a Deus.

A última etapa fora muito dolorosa, mas de duração relativamente curta. Eu não gritava, mas emitia fortes gemidos e me contorcia no limite do espaço que me restara meu braço parecia ter-se alongado alguns centímetros; a camisa ensopada, e o suor do rosto me fazia sentir o sal, nos olhos apertados. De repente, eu não sentia mais dores, invadindo-me um alívio, antes nunca sentido.

Trinta dias depois, eu voltava àquela Clínica para retirar o gesso do braço. Nesse tempo, nós já havíamos recebido o fardamento da Marinha e já desfrutávamos as licenças nos fins de semana, exceto aqueles que pertenciam ao quadro que estaria de serviço naquele dia.

No período em que estive com o braço engessado, eu estava de licença médica, o que me dispensava de tirar serviço de sentinela, fazer faxina, Educação Física, Ordem Unida, dentre outras obrigações. Entretanto, isso tinha uma contrapartida que eu não suportava: Era a suspensão do direito ao licenciamento nos fins de semana, enquanto perdurasse a licença médica. 

E foi esta a razão, pela qual eu passei todo o meu período de dispensa, com o braço engessado, cumprindo todas as obrigações que temporariamente eu não devia. Dessa forma, eu buscava esconder que estava de Licença Médica, a fim de não ser barrado por ocasião da vistoria para liberação na hora de “baixar à terra”. 

Durante algumas vezes fui interpelado por superiores hierárquicos sobre estar, ou não, de licença médica, no intuito de verificar se não havia falha na sua escalação para o serviço. Neste caso, não há tanta suspeição, tendo em vista que se torna difícil que alguém se negue esse seu direito, submetendo-se ao serviço de sentinela, na solidão e no frio das madrugadas, renunciando ao calor da lona de seu beliche, nas noites de chuva, e com três horas a menos de repouso, como eu pratiquei durante um mês inteiro.

─ Aprendiz 39, com esse braço... Você não está de Licença Médica? Perguntou-me, o Suboficial Contra Mestre, ao ver-me, na Casa da Guarda, tirando o serviço de Cabo de Quarto.

─ Não, Senhor, respondi e fiquei a observar que ele não se deu ao trabalho de consultar a relação dos licenciados do serviço, no quadro da parede, a menos de dois metros de onde estava.

E, no fio desta navalha, eu passei trinta dias. Valeu o sacrifício, mas eu ainda cometi uma falha: todos os dias eu fazia Educação Física, enquanto meu dever, durante a licença, era apenas me colocar, de pé, ao lado do Sétimo Grupo, ao qual eu era ligado durante as vinte e quatro horas do dia, dentro da Escola. Mas, eu fazia quase todos os exercícios, as exceções ficavam por conta do “Apoio de Frente” e outros que meus braços não suportariam.

O autor da denúncia, por desobediência a mim atribuída, não foi ninguém mais que o Sargento Enfermeiro, que assegurou, quinze dias antes, que o meu braço não estava quebrado. Ironia do destino, talvez.

Fui chamado para responder audiência logo no dia seguinte. O meu inquiridor foi o Capitão de Corveta Nelson de Albuquerque Wanderley, Imediato da Escola de Aprendizes Marinheiros. Ele leu a acusação, e falou que eu me explicasse. Restringi-me a dizer que eu fazia apenas os exercícios que não forçavam meu braço em recuperação; e que a minha outra preocupação era que, trinta dias sem exercícios, fatalmente eu aumentaria bastante o meu peso, o que não seria nada fácil quando eu retornasse, considerando que nossos monitores cobrariam pesado.

─ Você quer ser um marinheiro forte, não?

─ Sim, Senhor.

─ Cumpra as ordens do seu Capitão Médico. Vou dar-lhe, apenas, advertência. Pode retirar-se.

─ Com sua licença, Senhor Imediato.

Foi o primeiro Livro de Castigo que peguei. Eu sonhava em terminar o Curso sem nenhum registro naquele livro. Hoje, com meus setenta anos à porta, eu digo que os sonhos são feitos para ser sonhados; não são, necessariamente, concebidos para serem realizados.

A Marinha, para mim, foi uma grande escola e onde eu encontrei grandes amigos. Infelizmente, já não tenho contato com nenhum deles. Dois deles, eu sei que já morreram, mas... Deixem-me antecipar, uma pequena história, com uma grande coincidência:

Eu tenho um colega, amigo, Arimatéa, Agrônomo da Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ceará. Um dia, durante conversas nossas, informais, ele me falou que sua terra era Quixeré. Eu lembrei-me, então, do grande amigo que tive na Marinha, já falecido, sobre o qual falei no início desta história.

─ Arimatéa, o maior amigo que encontrei na Marinha, era de Quixeré.

─ E, como era o nome dele? Indaga.

─ Você não conhece, não. Isto já faz muito tempo. Foi em 1962, concluí.

─ Mas, diga, quem sabe, eu conheço, insiste ele.

─ O nome dele era José Acioly Gonçalves.

Arimatéa deixou escapar um sorriso, olhando-me desconfiado, fez um gesto de quem ia sair da sala, segurando a maçaneta da porta. Mas, continuou a sorrir, e falou:

─ Você está brincando comigo, não é?

Admirado, já antevendo que ele sabia alguma coisa, respondi:

─ Absolutamente. Não estou brincando. Você conheceu o Acioly?

Ele ficou sério, olhou-me e disse:

─ Ele era meu irmão.

Como eu disse, eu tive outros grandes amigos na Marinha. O Evilásio, de Aracati, alegre e comunicativo, foi para a sua querida Aracati, de férias, e não mais retornou para a Escola. Anos depois, eu soube que ele havia falecido, vítima de um acidente.

Qualquer aprendiz, durante o Curso, pode desligar-se da Escola no dia que assim o desejar. Basta solicitar desligamento, embora muitos não cumpram essa formalidade, preferindo sair de férias, ou licença, e não mais retornar para a Escola. Mesmo assim, não são considerados desertores, haja vista não serem ainda juramentados.

Outro grande amigo na Escola foi o maranhense Hilton Aquino, de quem jamais tive qualquer notícia, depois que abandonei o Curso. Como ele, eu também gostava de lutar boxe, reconhecendo que, do que aprendi dessa modalidade, eu devia quase tudo, a ele.

O meu conterrâneo Abelardo Medeiros, foi outro grande amigo. Em Camocim, éramos colegas do Ginásio Padre Anchieta, mas foi na Marinha que nos reconhecemos e forjamos uma grande amizade. 

Das grandes amizades forjadas na Marinha, o Abelardo foi o único de quem tive a certeza da sua continuidade na Corporação. Uns vinte e cinco anos depois, eu o reencontrei como Cabo, casado com uma carioca e servindo na Capitania dos Portos de Camocim. Posteriormente, retornou para o Rio de Janeiro, onde já servira anteriormente, e ainda permanece morando lá.

Nos últimos meses em que permaneci na Escola de Aprendizes Marinheiros, tenho lembranças de duas ocorrências que preocuparam o nosso país, já tão conturbado politicamente. A primeira foi em outubro de 1962, no auge da Guerra Fria. 

Embora em continentes distintos do nosso, preocupava bastante, tendo em vista o envolvimento de potências nucleares, no caso dos Mísseis Russos, os quais estavam sendo transportados para Cuba, onde seriam instaladas plataformas, cujo alcance seria suficiente para atingir os Estados Unidos. Kennedy, o então Presidente dos EUA, afirmou que bloquearia os Navios da Esquadra Russa que transportavam os Mísseis. Por outro lado, Kruschev afirmava que sua esquadra prosseguiria a marcha. 

Na escola nós tínhamos alguns esclarecimentos sobre o assunto através de Palestras ministradas pelo Capelão da Escola ou pelo chefe do Departamento Escolar Capitão-Tenente Luciano. Foram quase duas semanas de tensão no mundo inteiro, diante dos riscos de um conflito nuclear. Felizmente, as tensões se foram dissipando, quando os EUA apresentaram na ONU as provas das bases de lançamento em Território Cubano. 

O bom senso prevaleceu e o acordo foi assinado, Kruschev retirando as bases de lançamentos de Cuba; e Kennedy retirando as suas bases de lançamento da Turquia.

O outro susto, dentro de nossa casa, o Brasil, mas incomparavelmente menor, ocorreu em dezembro de 1962, menos de dois meses após a Crise dos Mísseis. Estávamos saindo de férias da nossa Escola quando irrompeu a Greve Nacional dos Marítimos. 

Ainda cedo da noite, O Oficial do dia estava relacionando os voluntários para se deslocarem, para o Porto do Mucuripe, a fim de guarnecerem os navios mercantes que haviam sido abandonados pelos Marítimos em greve. 

Não foi preciso convocar marinheiros, tendo em vista que os voluntários excederam o número necessário. As férias foram canceladas em parte, pois aqueles aprendizes, que tinham passagens compradas e viagens marcadas, foram liberados, inclusive eu.

No ano seguinte, em 1963, eu abandonei a Escola e o Curso, não tive mais interesse em continuar, diferentemente de meu irmão Toinho. Ele concluíra, no ano anterior, todo o Curso na Escola de Aprendizes Marinheiros e, no final, fez o Juramento à Bandeira, para servir na Marinha durante mais seis anos, além do tempo de Escola. 

Quanto a mim, desestimulado por motivos diversos, alguns alheios à Marinha, sequer pedi desligamento para ir embora. E fui sem me despedir, exceto dos amigos José Acioly Gonçalves e Abelardo Medeiros, este último ficando com a chave do meu armário para fazer a entrega de todo o meu fardamento ao Oficial responsável.

Retornei para visitar a Escola somente em 2001, quase trinta e nove anos depois, em companhia de meu irmão Toinho. Como não poderia ser de outra forma, encontramo-la muito diferente de tudo aquilo que conhecíamos. Senti saudades de minha juventude, de meus antigos companheiros e da própria Marinha, por quem ainda guardo, e hei de guardar para sempre, um profundo respeito e admiração.

Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado", de José Maria Trévia.
A obra está à venda na Associação Amigos das Artes de Camocim (AMARTES), cuja sede está localizada ao lado do prédio da Estação Ferroviária. Mais informações: (88) 9 9633-6526

A foto, de julho de 1962, mostra o autor, José Maria Trévia, em seu tempo de Aprendiz Marinheiro.