Manchete da Folha: Autodidata, amou os livros e incentivou a educação
Por Patrícia Pasquini
(Folha de São Paulo - Edição de 15/02/23)
(Folha de São Paulo - Edição de 15/02/23)
Apesar do pouco estudo, Agenor Bevilaqua era uma pessoa do conhecimento. Gostava de aprender e ensinar. Sabia russo, um pouco de francês, mitologia, astronomia, matemática e contabilidade, entre outros assuntos, como autodidata. Amante da leitura, montou uma biblioteca para cada filho.
Presenteava amigos e parentes com livros, e proporcionava encontros para dar palestras e aulas sobre temas de interesse.
"Ele queria que as pessoas tivessem conhecimento. Reunia as pessoas para passar informações sobre todos os assuntos", conta o professor aposentado Igor Briteslide Demaria Bevilaqua, 60, um dos filhos. Nos anos 1980, Igor conheceu a mulher, Delma Solange Dias Bevilaqua, em uma dessas aulas.
"Meu pai foi um artista que conseguiu se encantar com a vida, apesar dos tempos difíceis que viveu. Agnóstico que se dizia ateu; autodidata, que amava livros, o céu, as estrelas e curtia imaginar o multiverso enquanto ganhava a vida, na real", diz a física aposentada Rute Bevilaqua, 76, sua filha.
Agenor nasceu em Granja, no Ceará. Foi o primeiro filho do segundo casamento de Antonio Bevilaqua Filho e da professora de alfabetização Auta Sousa Bevilaqua.
Órfão de pai quando criança, aos 12 anos Agenor começou a trabalhar com contabilidade para ajudar no sustento da família. Foi a carreira que seguiu, mesmo sem formação técnica ou universitária. Agenor casou-se com Maria do Carmo Cesar e, pouco tempo depois, em 1946, mudou-se para São Paulo.
Por muitos anos, morou no bairro do Ipiranga. Ali deu exemplos da generosidade que guardava no coração. Durante a permanência na casa na zona sul da cidade —até os anos 2000—, abrigou cerca de 70 pessoas carentes.
"A maior preocupação dele foi pelos direitos e oportunidades iguais para todos. Sabia ouvir as pessoas e fazia amigos por onde andava. Era do tipo de tirar o próprio agasalho para doá-lo. Nossa casa frequentemente parecia mais um albergue, onde pessoas necessitadas passavam um tempo", relata Rute. Igor conta ainda que "muitas pessoas estudaram incentivadas por ele, construíram suas famílias por causa dele".
"O que eu sinto mais orgulho é de o meu pai ter dividido a própria casa com pessoas que precisavam. Ele tirava a roupa do corpo para dar a outro. Vivia chateado pelas situações vividas pelas minorias", completa. Na última eleição, apesar da idade avançada, fez questão de votar "para ajudar a resolver os problemas do Brasil", conta ainda o filho.
"Comunista desde jovem, preocupava-se com os direitos e oportunidades iguais para todos", diz. Segundo a família, Agenor foi preso diversas vezes por sua atuação política, enquanto o Partido Comunista atuou na ilegalidade no país.
"Ele conheceu bem, não só durante a ditadura de 64, o que era falta de liberdade de expressão e de democracia aqui no Brasil. De jovem, ele construiu uma personalidade e a manteve para o resto da vida. Dono de ideologia e princípios, não foi o comunista que virou bandeira", avalia Rute.
Ao se aposentar, Agenor voltou à terra natal e levou na bagagem a preocupação com a educação. Abriu uma escola rural e criou o jornal "O Rumo", na fazenda do avô. Para o seu orgulho, alguns dos alunos conseguiram vagas nas universidades federais.
"Uma das maiores alegrias do meu pai era receber ligações telefônicas dos ex-alunos para dizer o quanto a 14 de Julho da Jurema [nome da escola] tinha sido importante em suas vidas", conta Rute. Agenor morreu no dia 6 de fevereiro, aos 102 anos, em casa. Viúvo, deixou filhos, netos e bisnetos, além de suas memórias no livro "O Mundo que eu Vi.Blog", lançado em 2008.