Por José Maria Trévia
(Escritor Camocinense)
Foto: Autor com sua bicicleta, em setembro de 1963.
Em um dia qualquer do ano de 1966, eu estava na Loja, onde trabalhava com o meu pai. Ainda não passara das 08:00h quando ele se aproximou de mim, e disse:
─ Cadê sua bicicleta?
─ Está em casa, respondi.
─ Pois vá buscar, eu quero que você vá ali, pra mim.
Eu saí, sem perguntar nada, e fui pegar a bicicleta. Dificilmente eu a levava para a Loja, exceto se houvesse uma razão fora da rotina. Ao retornar, ele me aguardava com algum dinheiro na mão. E foi logo me instruindo:
─ Vá a Granja e procure o Raimundo Ivan, ali no Posto, da Praça do Mercado. Diga que estou pedindo que ele me mande um pacote de cigarro Minister. E pague, disse ele, entregando-me o dinheiro.
Eu montei de novo na bicicleta e saí em busca da estrada que se estirava em 25 quilômetros. O sol já começara a esquentar o dia mas, pelo menos, a minha estrada já era asfaltada. Ruim era no tempo da piçarra ou da areia, onde a força não rendia.
Pedalei pela estrada afora, sem parar em lugar nenhum, até porque não havia lugar bom de parada e nem havia razão pra isso. Cheguei ao Posto, encostei a bicicleta e procurei o Senhor Raimundo Ivan, transmitindo-lhe o recado do papai e repassando-lhe o dinheiro.
─ Como está seu pai? Está bem, respondi.
─ Ele tem ido à Fazenda?
─ Sim, ele vai toda sexta-feira e retorna domingo.
Ele foi saindo e recomendou-me que eu aguardasse ali. Pouco depois ele retornou com o cigarro e o troco. Eu agradeci e dirigi-me para onde encostara a bicicleta, enquanto ele me observava.
─ Você veio de Camocim de bicicleta?
─ Foi, sim, respondi-lhe.
─ E já vai voltar, agora?
─ Vou, sim, senhor.
─ Espere aí, um instante, disse ele, saindo e chamando um de seus serviçais.
Minutos depois ele retornou, mostrando um caminhão que ultimava seus preparativos para seguir viagem.
─ Pronto, José, aquele caminhão está saindo agora para Camocim. Você vai com ele. E ordenou ao empregado que colocasse minha bicicleta na carroceria, enquanto eu me instalava na primeira classe: Tinha vaga na boleia.
Em menos de meia hora eu estava na Praça do Mercado, em Camocim. Retomei minha bicicleta e voltei pra Loja.
─ Retornou muito depressa. O que houve?
─ Fui de bicicleta e voltei num caminhão. O Raimundo Ivan me arranjou uma carona de volta. Ele sorriu, entrando na Loja com o seu pacote de Minister, com filtro. Ele sabia das minhas peripécias em cima de uma bicicleta, principalmente nos passeios para lugares de animados banhos no inverno, como Granja, Barroquinha, Jatobá, Amarelas e Privat, com alguns amigos também valorizadores da bicicleta.
Naquela época, em Camocim, eu lembro, apenas, três pessoas que fumavam cigarros, Minister ou Carlton, com filtro: Meu pai, seu irmão Fernando Trévia e José Jáder de Carvalho Aguiar, funcionário do Banco do Brasil.
Esta história, pequena, termina aqui. Mas, ela tem um ponto em comum com outra narrativa, que gostaria de contar. O ponto em comum é minha bicicleta, que ainda tenho na minha memória como uma paixão, não pelo objeto em si, mas, por sua cumplicidade na superação de minhas andanças e desafios nos tempos de jovem.
E este fato, que passo a contar agora, aconteceu, também, no saudoso ano de 1966.
Conforme eu já falei, dificilmente eu utilizava a bicicleta para me deslocar para o trabalho, na Loja do meu pai. Quando acontecia, ela ficava protegida do sol, durante a tarde inteira, sob a sombra do frondoso Ficus Benjamin, que se oferecia em frente à nossa loja.
Em um dia qualquer daquele ano, no final da tarde, fechei a Loja e fui para casa, a pé. Esqueci a bicicleta no local descrito, com um dos pedais apoiado na margem da calçada da avenida.
Quase vizinho à loja, ficava o Cassino do Chagas que, às vezes, varava a madrugada, velando o carteado à luz da velha Petromax. Naquela noite o Cassino se manteve ativo até altas horas, mas, decidiram que estava na hora de voltar para casa: Pelo cansaço de alguns ou pela “lisura” dos perdedores.
O Cassino foi fechado, mas restavam alguns minutos de conversa na calçada, comentários sobre o jogo, ou alguma rodada em especial. Há muito, os dois motores a óleo Diesel, do fornecimento de energia, haviam sido desligados, e a cidade estava envolta na escuridão, haja vista que nem a lua tinha compromisso naquela madrugada. O Chagas e o Dezessete saíram juntos e passaram ao lado do Ficus Benjamin, tão perto que perceberam uma bicicleta, ali encostada. Olharam para um lado, para o outro, sem visualizar nenhum vivente por perto. Examinaram o achado e o reconheceram:
─ Essa bicicleta é do Zemaria, do “Seu” Zé Trévia, disse o Dezessete.
─ Então, vamos guardar ali no Cassino, concordou o Chagas. E, assim, fizeram.
Eu sempre chegava às 07:00h, à Loja, meu pai, geralmente, já se encontrava lá. Eu começava varrendo, espanando e alguma outra atividade rotineira. Neste horário, o Cassino já estava de portas abertas, não devido à sua atividade, mas por conta da Barbearia do Pedro Chicó, que funcionava na antessala.
Como todo vendedor de Loja, eu também gostava da porta, a fim de apreciar um pouco o movimento da Praça. Em dado momento, aproximam-se os dois personagens da ocorrência na madrugada, o Chagas e o Dezessete, disfarçando para não demonstrar uma conversa ou atitude ensaiada. No momento seguinte, veio a pergunta:
─ Zemaria, cadê sua bicicleta? Indaga o Dezessete, enquanto o Chagas apenas observa, de braços cruzados.
─ Está lá em casa, respondi.
─ Na sua casa? Tem certeza?
─ Claro. Eu não vim com ela! O que é que você quer?
─ Nada. Quero dizer, venha aqui no Cassino pra eu lhe mostrar uma coisa.
Eu o acompanhei ao Cassino. Logo na entrada, o Pedro Chicó já deixara escapar um sorriso gozador, cujo motivo pude entender, somente depois, quando soube do que ocorrera com a bicicleta.
Você conhece? Indaga o Dezessete, apontando para a bicicleta, a um canto.
─ É claro que conheço. É a minha.
─ Se é a sua, então, pode levar.
─ É claro que vou levar. Agora, quero que você me diga como ela veio parar aqui, disse eu, pegando no guidom da bicicleta e saindo, enquanto eles riam do meu descuido.
Uma vez por outra, eu ainda vejo o Dezessete pelas ruas de minha cidade. Faço festa quando o encontro, vivendo ele da pouca renda de pequenos serviços, vendendo algum peixe ou como outros que conseguia, no extinto Cassino do Chagas.
Texto extraído do livro "Memórias de um Saudosista", de José Maria Trévia