Há algum tempo rabisco um romance que começa com um triplo assassinato de um branco, uma índia e um escravizado.
Na verdade, os corpos aparecem aqui em Camocim, mas são executados em outro lugar. A própria cidade é um personagem. Na sua primeira entrada no romance ela diz:
Eu sou um lugar que transmito paz. Não que desde os primórdios não aconteçam tragédias e pequenos incidentes e intrigas paroquiais como em qualquer outro local.
Quando pressenti que minha história estava próxima a ser contada, quem sabe, numa bela trilogia (porque esta formatação sempre fascina leitores ávidos por histórias de aventura?), não desconfiava que começasse por um triplo assassinato.
Será que o que imaginei para a posteridade vai se restringir a um conto ou romance policial? Por isso, propositadamente me interponho nesta narrativa canhestra acima e talvez sem muita inventividade. O narrador não sabe que interfiro desta forma, talvez somente quando a história vier a lume.
Mas eu preciso dizer umas coisinhas antes que ele se dê conta. Embora estes fatos tenham realmente acontecido, é preciso dizer que eu tenho uma história anterior a estes fatos, para que os leitores não pensem que sou apenas um lugar que acolhe pescadores contadores de histórias de pescadores.
Mas, o que quero mesmo dizer – para aliviar um pouco a impressão que o narrador impingiu inicialmente – é que muito antes destes fatos, os homens se tomaram de amor por mim, outros, porém, nem tanto. O certo é que ainda hoje, apesar da idade ainda tenho meus encantos, cantados em verso e prosa, outros explorando e maculando minha beleza inicial. É uma pena que não tenham registrado o que tento dizer agora. As impressões sobre mim de outrora, ficaram restritas a pequenas passagens dos relatórios dos aventureiros do outro lado do mundo. “Tem pau-violeta que os locais chamam de Tatajuba”. “Tem boas áreas de salinas e âmbar”.
Mas eu queria mesmo que eles se referissem à combinação de ambientes que eu tenho, descrevessem minhas paisagens exuberantes em toda sua beleza e variedade.
Pero Coelho, o português vigilante do território conquistado perdeu uma ótima oportunidade de aqui fincar um forte. Pensando bem, foi melhor ele ter se desiludido com a rápida avaliação que fez do meu potencial de abrigo para as tropas. Os habitantes da terra tiveram um pouco mais de descanso para usufruir de mim.
O próprio Vieira, visitador religioso do império luso só veio reconhecer minha silhueta quando estava nas alturas da Serra Grande: "Depois que se chega ao alto delas (Serra da Ibiapaba) pagam muito bem o trabalho da subida, mostrando aos olhos um dos mais formosos painéis que porventura pintou a natureza em outra parte do mundo, variando de montes, vales, rochedo e picos, bosques e campinas dilatadíssimas, e de longe do mar no extremo dos horizontes.
Sobretudo, olhando do alto para o fundo das serras, estão se vendo as nuvens debaixo dos pés que, como é coisa tão parecida com o céu. Não só causam saudades, mas já parece que estão prometendo o mesmo que se vem buscar por estes desertos".
Embora que digam que o velho religioso se embebedou com minha beleza praiana, apenas de cima ele me divisou para explicar a moldura que o mar proporciona no horizonte.
E mais não digo porque nada escrevi além disso...
*Professor, Historiador, Escritor e Editor do Blog Camocim Pote de Histórias
Foto: Camocim. Vista aérea. 1941. Revista "O Cruzeiro"