Por José Maria Trévia
(Escritor Camocinense)
Foto: O Douglas DC-3, da Real, no “Campo de Aviação”, em Camocim, na década de 1950.
No lado esquerdo da foto, a modesta residência do guarda-campo, com o seu pequeno alpendre, local onde os passageiros se abrigavam, aguardando o embarque.
A REAL E O CORINGA
A Real Aerovias foi uma companhia aérea que durante alguns anos marcou sua passagem por Camocim.
Esta empresa iniciou seus voos, ligando Camocim a Fortaleza, a partir do ano de 1953, agenciada por um jovem de nome José Maria, proveniente da capital cearense e, de cujo sobrenome, as lembranças não foram preservadas.
O referido agente foi enviado para nossa cidade a fim de assumir tal função, mas, não obteve o êxito esperado, sendo, então, substituído pelo nosso conterrâneo Olavo Oliveira Caldas, no dia 1º de janeiro de 1954.
O convite ao Olavo Caldas foi pessoalmente formalizado pelo Gerente da Real para o Estado do Ceará, senhor Edgar Albuquerque, quando a presidência da Companhia, em São Paulo, era exercida pelo seu proprietário, o senhor Linneu Gomes.
Transferido para Maceió, em 1956, o Olavo Caldas foi substituído em Camocim pelo seu irmão Paulo Caldas, mas, esta mudança perdurou por pouco tempo, haja vista não ter, a empresa aérea, conseguido licenças para a sua ampliação e a criação de novas linhas aéreas, de conformidade com os seus planos de expansão.
Assim, o Paulo Caldas foi exercer suas funções em São Luís, no Maranhão, abrindo o espaço para que Olavo Caldas retornasse à sua Agência de origem, onde deu prosseguimento ao trabalho, com o apoio profissional da camocinense Cléa Monte, como sua Auxiliar Administrativa.
Os aviões operados pela Real eram os famosos bimotores Douglas DC-3, lembrados até hoje pelo seu inigualável desempenho, se comparado aos demais modelos de sua categoria. O DC-3 tinha capacidade para 28 passageiros e, geralmente, sua tripulação era composta pelo comandante, o comissário de bordo e uma aeromoça.
Pelas repetidas vezes em que voaram para Camocim, tornaram-se bastante conhecidos os comandantes Lucena e Viegas, além do comissário de bordo, Lélio.
Considerado por alguns aficionados como o mais conhecido avião do mundo, o Douglas DC-3 deu uma enorme contribuição à integração do Brasil, incluindo, dentre os destaques, as suas atividades à época da construção de Brasília.
Cerca de duzentas dessas aeronaves cruzaram os céus do Brasil nas décadas de 1950 e 1960. Com seus dois motores marca Pratt & Whitney, refrigeração a ar, 14 cilindros, potência de 1.200 HP, o DC-3 ostentava um comprimento de 19,60 metros e uma envergadura de 29 metros, podendo atingir até 370 km por hora.
Para os camocinenses, a linha regular que lhes servia sistematicamente era o voo proveniente de Fortaleza com destino a Camocim, retornando, logo em seguida, para Fortaleza. No decorrer de sua existência, algumas modificações se processaram nos seus horários e nos dias em que realizava esses voos. Todavia, nas melhores épocas para esta linha da Real, havia voos às segundas, quartas e sextas-feiras, chegando e partindo de volta, em horário que permeava o final da tarde e o início da noite.
Entretanto, a Real mantinha, também, um voo comercial entre Belém e Fortaleza, com escalas em São Luís, Codó e Parnaíba. Era, através dessa linha, que o Olavo Caldas buscava melhorar o desempenho da Companhia naquele trecho, angariando passageiros em Camocim e municípios adjacentes.
Assim, eventualmente, ele conseguia uma alteração nessa rota, para realizar escala, em Camocim. Esta escala extra, que tanto beneficiou a Real Aerovias e os seus usuários, valeu ao Olavo Caldas o apelido de Pouso-Extra, alcunha esta criada por seus próprios colegas de empresa.
Dentre os passageiros que utilizavam os serviços da Real, embarcando em Camocim, havia uma parcela significativa proveniente dos municípios circunvizinhos, dos quais podemos destacar Granja, com uma forte contribuição de pessoas das famílias Oliveira, Arruda e Xavier; e Uruoca, cujo deputado Tonico Rocha era cliente habitual, frequentemente acompanhado por alguns amigos ou familiares.
Em Camocim, havia muitos usuários habituais dos voos para Fortaleza, sendo um dos mais destacados o senhor Alfredo Coelho, bastante lembrado por seus atrasos costumeiros e seu excesso de bagagem. Ademais, não aceitava que lhe fossem cobradas taxas pelo excesso de peso, geralmente atribuído às suas latas de peixe, com que presenteava seus amigos e familiares, em Fortaleza.
A negociação, entre este usuário e a Companhia, exigia um considerável jogo de cintura por parte do agente, substituindo as taxas adicionais por cortesias administrativas, além de, algumas vezes, ter sido levado a retardar a decolagem no intuito de oferecer, ao retardatário, a chance de não perder o seu voo.
Ademais, ainda se desdobrava em sua habilidade para conquistar a compreensão dos demais passageiros, diante do pequeno atraso. Era uma forma sensata de não criar um clima descortês na relação com um usuário da Companhia e empresário de grande influência política, em Camocim.
Com sua pista recoberta de piçarra, o modesto campo de pouso, que denominávamos “Campo de Aviação”, não era dotado de sinalização noturna, o que exigia uma solução doméstica a fim de possibilitar pousos e decolagens naqueles horários do início da noite.
As duas margens da pista eram, então, pontilhadas de faróis a querosene, do tipo comumente utilizado, naqueles tempos, em residências e locais de comércio interioranos. Assim, o “seu” Júlio, o velho guarda-campo, transportava braçadas dessas luminárias, que ia distribuindo em pontos equidistantes, margeando a pista ao longo de algumas centenas de metros. Esta era a única sinalização luminosa de que dispunha o hábil piloto do DC-3, para auxiliá-lo nas operações de pousos e decolagens, na terra de Euclides Pinto Martins.
O “seu” Júlio, cujo nome completo é Júlio Antonio da Silva, nasceu em Camocim no dia 09 de janeiro de 1913, e trabalhou naquele campo de pouso durante o período de 04 de maio de 1940 a 17 de setembro de 1980.
Durante os quarenta anos em que ali exerceu, com esmerada dedicação, a sua função, ele foi testemunha de pousos e decolagens de diversos tipos de aeronaves que por ali passaram, desde os apelidados mosquitos e os pequenos teco-tecos, passando pelos aviões da FAB, indo até os DC-3 da Real e culminando com os pouco confiáveis bimotores da Paraense Transportes Aéreos.
O “seu” Júlio viu de perto, também, inúmeras personalidades importantes que ali embarcaram ou desembarcaram, a exemplo de Ademar de Barros e Juscelino Kubitschek de Oliveira, durante suas campanhas eleitorais de 1955, para a Presidência da República. Da mesma forma, ele testemunhou a decadência das companhias aéreas que serviram nossa cidade, e o silenciar de seus motores, na vastidão de nosso velho “Campo de Aviação”.
Foram bons tempos aqueles, memoráveis tempos em que a estrutura de apoio existente era composta, apenas, pelo antigo depósito de material e a casa em que moravam o guarda-campo e sua família, cujo alpendre era o único ponto de acolhida aos passageiros que aguardavam o embarque.
O Fícus Benjamin, defronte àquela casa, continua lá, altaneiro, quase centenário, mas, ainda, saudável, e testemunha muda de inúmeras histórias, que caminham para o abismo do esquecimento.
No inverno de 1954, por duas ou mais vezes, as chuvas danificaram a pista de piçarra, abrindo pequenas crateras e voçorocas, exigindo que reparos fossem efetuados.
Na época, meu pai possuía um caminhão Chevrolet, de fabricação americana do final de década de l940, que realizava o serviço de transporte da piçarra necessária ao conserto da pista. Por sua vez, a Prefeitura Municipal de Camocim, na pessoa do então Prefeito Setembrino Veras, assumia as despesas, sempre que essa intervenção se fazia necessária.
Neste mesmo ano de 1954, eu tive o privilégio de voar pela Real, um sonho de muitas crianças de minha época. Meu pai adquiriu nossos bilhetes de passagem na Agência da Real, que funcionava numa pequena sala pertencente ao Senhor Alfredo Coelho, na atual Rua Alcindo Rocha, nº 122, ainda hoje existente.
Antes de ser ocupada pela agência da Real, ali funcionou o pequeno Bar Coelho, de propriedade de Raimundo Coelho, à época em que, bem próximo e na mesma rua, havia o conhecido Bar Pindorama, de propriedade de meu pai.
Do serviço de bordo, oferecido no Douglas da Real, lembro dos chicletes oferecidos aos passageiros, além de um invólucro de papel especial, onde meu pai, ao recebê-lo, acondicionou a sua caneta-tinteiro Park 51. O uso desse protetor era uma precaução, diante do provável vazamento de tinta, considerando-se que aquela aeronave não era pressurizada.
Na parte dianteira da fuselagem de seus aviões, a Real exibia a figura de um coringa, o qual representava a mascote da Empresa. Esta marca, evidentemente, era encontrada em tudo que lhe dizia respeito, incluindo-se impressos e brindes oferecidos aos seus usuários.
A versão mais aceitável, dentre aquelas que buscavam explicação para a escolha do coringa como mascote da Companhia, evidenciava que o senhor Linneu Gomes, seu proprietário, por ser apaixonado pelo carteado e exímio jogador de pôquer, havia optado pela figura que representava a flexibilidade, identificando-se com as características inerentes à Real, como ousadia e versatilidade, fazendo-se cada vez mais presente em todos os rincões do Brasil, e sempre em busca de ocupar novos espaços.
Entretanto, esta Companhia logo iniciou o declínio de sua fulgurante ascensão pelos céus brasileiros. O seu arrebatador crescimento, cuja ousadia sobrepujava a participação de congêneres já estabelecidas, desapareceu tão rápido quanto foi o seu surgimento.
Os verdadeiros motivos que culminaram com a sua venda para a Varig, em 1960, bem como, os termos das condições em que foram fechadas as negociações, nunca foram totalmente esclarecidos.
A Real manteve seus voos regulares para Camocim até o início de 1959, encerrando a época de um glamour que a sua presença representara para uma cidade pequena, ainda tão romântica e provinciana.
A partir de então, os inesquecíveis bimotores, exibindo o seu coringa nas faces reluzentes, deixaram de voar para Camocim, despedindo-se, definitivamente, do nosso velho “Campo de Aviação”.
Nas minhas lembranças de infância, ela será sempre real, lamentando apenas que o versátil coringa, carta da manga nos desfechos dos jogos da vida, não lhe tenha salvo do epílogo, na sua última e definitiva cartada.
Texto extraído do livro "Outros Tempos", de José Maria Trévia