Para alguns, ele acaba de forma melancólica tão logo sai, borbulhante, repleto de alegria e de esperança da nascente. Para outros, fenece tristemente quando suas águas fugidias começam a ganhar ímpeto e vigor. Para uns poucos privilegiados, entretanto, não se sabe bem por que, ele se torna bastante extenso, caudaloso, profundo.
Dentro de poucos meses, o verdadeiro Homem de Aço, José Ferreira dos Santos, meu pai, completararia 106 anos.
Diferentemente do Super-Homem, nunca precisou do disfarce de Clark Kent para acomodar sua longa existência.
Sempre se mostrou abertamente, verdadeiro e leal.
Nascido em Camocim no dia 20 de Julho de 1914, em plena efervescência da Primeira Guerra Mundial, cujo conflito estender-se-ia até meados de 1919, filho do casal Antônio dos Santos e Guida, teve uma infância e adolescência marcada pela dificuldade cotidiana da humilde família, cuja morada ficava defronte à velha Usina de Força, na Rua 24 de Maio, fato esse que certamente o motivou a se dedicar mais aos estudos para que pudesse tecer, com seu esforço pessoal, paciência, determinação, inteligência, um futuro mais promissor para si.
Assim, venceu grandes desafios, transpôs Rubicões, ganhou inúmeras batalhas memoráveis.
Homem simples, mas de visão extraordinária, deu aos filhos um presente dos deuses, a Educação, por saber que o conhecimento é o bem mais precioso que existe - e feliz daquele que o tem alicerçado na mente.
A retidão de princípios, que nos induz a cultivar imorredouros valores, que forja admiravelmente a personalidade de cada um de nós - e nos permite alçar voos de larga escala - sempre marcou a sua trajetória.
No topo da montanha, pela idade que galopava, ligeira, gostava de observar a planície distante, lá em baixo, sereno, desfiando um rosário de fatos passados, que rodavam um filme de gratas e perdidas recordações, mas também de lembranças tristes, em tela gigante, cinemascope, que iam e vinham como as ondas do mar.
Homem de fibra invulgar, determinado, jamais esmoreceu diante das enormes pedras espalhadas pelo caminho.
Com palavras de incentivo, e, principalmente, com atitudes, nos motivava, quando estávamos cansados, com os pés doloridos e o espírito alquebrado, a seguir em frente, pela trilha estreita, sem reclamar das adversidades inerentes à caminhada.
Hoje, 27/3/20, meu pai, ferroviário da velha estirpe, pegou seu último trem rumo às estrelas. Dessa vez, não teve como correr e saltar da plataforma para o último vagão, como costumava fazer.
Casou duas vezes, tendo uma prole de onze filhos, sendo que meu irmão Raimundo Augusto, viajou antes dele, em 2017, para recebê-lo com alegria no céu.
Minha mãezinha já havia partido, em 2005, para nos acolher, no infinito, com seu sorriso que brilhava mais que o próprio sol, arrumando, com zelo incomparável, os preparativos para a chegada de cada um de nós.
Obrigado, papai, pelos sábios ensinamentos, pela dedicação à família, pela imensidão de dias de trabalho intenso para levar para casa o pão.
Jamais esqueceremos o seu exemplo de abnegação, embasado em sólidos valores morais, que nos orientou a seguir pelos caminhos da vida, nem tampouco a sua fé inabalável em Deus, que fez com que a nossa canoa, apesar de ter enfrentado fortes ventos, tempestades, nunca perdesse o horizonte da esperança de vista, certos de que, sob seu comando, chegaríamos a porto seguro.
Agradecemos a você, meu pai, por nos incentivar sempre aos estudos, não medindo esforços, apesar de nossa pobreza, para nos oferecer as condições necessárias para trilharmos a estrada do conhecimento.
Sua jornada terrena chegou ao fim, mas não o seu legado.
Vamos seguir em frente, espalhando a semente do bem, pelas veredas, como o senhor nos ensinou, na certeza de que breve nos reencontraremos na mansão celestial.
Descanse em paz, meu pai! Afinal, o senhor combateu o bom combate, completou a corrida, cumprindo exemplarmente a sua missão na Terra.
A dor por sua partida, que ora sentimos, será transformada em risos e grande contentamento quando estivermos, novamente, todos juntos, reunidos, felizes, no outro plano, ao lado do bom Deus, onde não existe sofrimento, angústia, nem lágrimas.
Espero que, na eternidade, haja trens para que o senhor possa se encantar novamente com as locomotivas voando, devorando milhas, parando, aqui e ali, nas estações estelares, para a descida e subida de passageiros, descortinando, ao longo do trajeto, paisagens exuberantes, ao sair dos "cortes", como apreciava antigamente, em especial na descida da rampa do Muquém, com a Maria Fumaça com meio palmo de língua para fora, esbaforida por tanta carreira, com olhos súplices, direcionados ao maquinista, para que diminuísse a marcha, para que ela, pobrezinha, pudesse tomar fôlego - e respirar com calma, sem cansar à toa o coração.
Não sei em qual estação, meu querido velho, eu vou subir no seu trem. Mas, saiba, desde já, que ficarei muito feliz por reencontrá-lo, dando-lhe um abraço apertado, tendo-o como chefe de trem nesse dia.
Sua benção, meu pai!
*Professor e Escritor Camocinense
Foto: autor desconhecido