domingo, 20 de agosto de 2023

O SILÊNCIO DOS APITOS

Por Avelar Santos*

No entardecer sereno do galopar dos anos, com a alma tranquila e resignada, sou levado, vez por outra, nas madrugadas insones da vida, pelo incansável – e generoso  bonde que nos leva gentilmente a perdidas e remotas estações, no distante passado, para que eu possa trilhar novamente velhos caminhos tão conhecidos, na minha amada Camocim do Século XX, observando, cuidadosa e carinhosamente, com a mente e com o coração, tudo que se descortina em derredor nesta fascinante – e bela - paisagem. 

Naquelas manhãs de uma luminosidade única, que nos cegava a vista se ousássemos infantilmente encará-la na sua total amplitude, em que o Sol descia um pouco do céu para ver mais de perto o espetáculo grandioso e solene do mar esverdeado lá embaixo, a tanger mansamente seus cavalos brancos, de puro cristal, na barra, aguardando pacientemente o primeiro navio do dia para levá-lo zelosamente ao Porto, cedinho eu saía, juntamente com meus irmãos, para a inesquecível Escola de D. Mimi, a dois quarteirões lá de casa, sem desgrudar um só instante os olhos curiosos do deslizar suave das canoas e das jangadas, que enfeitavam bucolicamente nossa baía de uma paz imensa indescritível. 

Na algazarra feliz do reencontro de amigos, falava-se camaradamente das traquinagens do dia anterior e também de coisas triviais acontecidas. Sem prestar muita atenção aos colegas, voltava insistentemente o meu pensamento para o braço do Atlântico que nos abraçava, tentando adivinhar qual navio ancoraria no Cais - e nos encheria de júbilo. 

Daqueles imorredouros tempos idos, o Aratanha, o Areia Branca e o Rio Piancó revezavam-se costumeiramente em nos visitar. Agradecidos, recompensávamos, cada um deles, com o nosso bem mais valioso, com o nosso ouro branco – o sal. 

Ao término da aula, com os ouvidos atentos ao primeiro ribombar do apito do gigante de aço, mal a professora se despedia de nós, alertandonos draconianamente para o estudo criterioso das lições, arrumava desajeitadamente livros e cadernos - e meus pés voavam sobre as calçadas, levando-me, ileso, ao balaústre, para admirar as manobras que o navio faria para o atracamento final. Que coisa linda, meu Deus!

À tardinha, depois de feitas religiosamente as tarefas escolares e de uma rápida incursão ao quintal amigo, para um dedo de prosa com as goiabeiras e sirigueleiras, com uma alegria incontida a invadir-me o peito, dirigia-me, de um pulo, após o consentimento prévio de minha amada Mãe, à Praça da Estação, teimosamente colada à velha casa em que morávamos, a fim de ver o vai e vem das pessoas que aguardavam, ansiosas, a chegada do trem. 

Então, um apito longo – e nostálgico – se fazia ouvir, lá para as bandas do Salgadinho, anunciando a chegada de Sua Majestade Imperial. Como num passe de mágica, o local esvaziava-se de repente. Era um corre-corre, gritos, empurrões, todos acorrendo à Gare, cada um querendo o melhor ângulo de visão do paquete. 

Quando ele apontava no Portão, o alvoroço recomeçava mais fortemente. E aí, um apito saudoso reboava pelos ares, invadindo as dobras ocultas de nosso ser, deixando-nos extáticos e extasiados. E assim uma sinfonia suprema - e inigualável– de apitos se fazia ouvir por toda cidade, ecoando límpida em nossos tímpanos, dia após dia. 

O que foi feito, bom Deus, do trem e dos navios? Que maldição, Senhor, nos foi desgraçadamente imposta pelo destino? 

Por onde andam, Pai, os apitos plangentes que embalavam os nossos sonhos de menino? Hoje, na quietude das manhãs, percorro calmamente as mesmas ruas de minha infância querida. Um silêncio sufocante dilacera-me amargamente a alma. Infelizmente, não há nada que eu possa fazer para fugir dele. 

O trem, pobrezinho, perdeu-se na bitola podre dos anos e na estupidez dos mandatários de outrora. Os navios, não sei por que, perderam definitivamente o rumo - e suas bússolas enferrujadas nunca mais nos encontraram. Que pena! Para onde vou, carrego o fardo pesado das lembranças do passado. Não sei por quanto tempo mais!

*Professor e Escritor Camocinense