Transcorria o ano de 1954 e estávamos de férias escolares. Eu e meus dois irmãos mais velhos buscávamos o recheio para aqueles dias de ociosidade. No quintal de nossa velha casa, da Rua Senador Jaguaribe, onde o trio vagava em busca de alguma inspiração, uma cabeça “iluminada” concebeu a extravagante idéia de construirmos um alçapão para capturar algum passarinho, dentre os que, constantemente, sobrevoavam aquelas paragens.
A idéia foi, imediatamente, aprovada por unanimidade, até porque as alternativas de ocupação andavam escassas por aqueles dias. Mãos à obra, então, e pés descalços nos terrenos baldios em busca dos talos e palitos de coqueiros, que por ali se apresentavam em abundância. Com poucas horas de trabalho, a mão-de-obra pouco especializada criara uma arte, em forma de monstrengo, uma coisa tão malfeita que envergonharia qualquer critério de seleção, pois suas formas desafiavam a mais simples teoria da Arquitetura, e onde era, praticamente impossível, encontrar-se um ângulo de 90 graus.
Estava quase pronta, faltando, apenas, o elemento traiçoeiro, qual seja, uma estreita fita de borracha, que fecharia a porta da armadilha, quando fosse acionado o seu dispositivo.
Pedaço de velha câmara-de-ar foi, cuidadosamente, cortado com a tesoura de costura da mamãe, retirada às escondidas. Agora, sim, estava pronto o engenho do mal, exposto em cima do muro, levando, em seu bojo, uma fatia de mamão, colhido, ali mesmo, no nosso quintal. Ausentamo-nos dali e chegamos a esquecer, por um bom tempo, que planejáramos algo contra os Bem-te-Vis e Sonhassus.
A tarde já ia pela metade quando retornei ao quintal e tomei um tremendo susto, ao verificar que a armadilha havia capturado um lindo espécime. Avisados, os outros responsáveis pela artimanha logo se ocuparam em descer do muro o alçapão, para melhor examinar o prisioneiro.
Era um lindo Corrupião, asas pretas e um dorso vermelho com tons alaranjados, e que, mesmo assustado e debatendo-se, a relutar, inutilmente, contra a prisão, mal conseguia movimentar-se dentro do pequeno espaço, com a isca que agora nem um pouco o atraía.
Refeitos da surpresa e amenizada a curiosidade inicial, percebemos que teríamos de alojar o prisioneiro em um espaço maior, visto o pequeno alçapão não possuir as condições para seus indispensáveis movimentos. Além disso, a função do alçapão, era, apenas, capturar, jamais manter o prisioneiro confinado por um tempo prolongado.
Conseguimos, por empréstimo, uma gaiola maior e nos habituamos a contemplar aquela criatura maravilhosa e a ouvir a beleza de seu canto, embora exibido com certa raridade. Não sei se a pouca freqüência, com que nós o ouvíamos cantar, era ocasionada pela tristeza da vida prisioneira ou uma forma de represália, manifestada pelo fato de termos roubado a sua liberdade. Assim, privava-nos, do encanto de seus cantos maviosos.
Meus pais não aprovavam o cativeiro dos passarinhos, mas não eram suficientemente severos, quando se tratava da ordenança para a libertação daquelas vítimas indefesas. Entretanto, mesmo com essa relativa liberdade para manter passarinhos prisioneiros, foi muito curta a nossa fase em que praticamos o que hoje consideramos uma atrocidade.
Felizmente, transcorridos alguns meses, após a sua captura, nosso corrupião ganhou a liberdade. Quem lha devolveu, nunca soubemos, mas, pelo número de adeptos da causa libertária existente, não se admira que ela tenha ocorrido. Ademais, não havia, de nossa parte, nenhuma paixão pela permanência daquele costume. Ficou, então, a dúvida: ou a velha Maria Luzia, por descuido, deixou a portinhola aberta, após ter colocado água e comida, ou, quem sabe, num gesto nobre e de amor à natureza, minha mãe resolveu mandar embora aquele inquilino, que não ocupava aquela morada por sua opção.
Qualquer que tenha sido a forma ou caminho, para a conquista da liberdade, o desfecho foi, indiscutivelmente, o mais justo. E o interessante é que o ditoso corrupião ainda permaneceu, durante três ou quatro dias, fazendo festa pelos trapiás do terreno baldio de nossa vizinhança, cantando até bem mais do que o fazia, quando se encontrava engaiolado.
Será que estava demonstrando gratidão a quem havia emitido o seu alvará de soltura? Para nós, não houve sentimento de perda, talvez até tenhamos apreciado vê-lo livre, pelas redondezas, durante aqueles dias.
Lembro-me de que, no dia seguinte ao da sua libertação, sem demonstração de frustração, fomos devolver a gaiola que havíamos tomado por empréstimo. Acho até que isso alimentou um sentimento de valorização da liberdade.
Ainda hoje, guardo uma sensação de arrependimento, por tê-lo mantido no cárcere, durante meses; de tê-lo impedido de voar livremente e privado do convívio com os seus.
Na verdade, sinto-me carcereiro de um inocente, condenado sem acusação, sem defesa e sem julgamento. Certamente, a mãe-natureza, de alguma forma, corrigiu esta distorção.
Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado".