Acordei assustado com as fortes batidas na porta de minha casa, na Rua Senador Jaguaribe. Era pouco mais de cinco horas da manhã daquele domingo e o Carlos Augusto Monteiro já bradava meu nome na calçada e, com os ossos salientes dos dedos da mão fechada, repetia as batidas na porta. Eu já tomara consciência de que, por algum motivo, o despertador não havia cumprido a sua tarefa, e que eu estava atrasado para a instrução do Tiro de Guerra.
Chegara tarde da animada tertúlia no Comercial Club e pusera de prontidão a porcaria daquela máquina, mas ela não funcionara. Posteriormente, viria a descobrir que eu mesmo me esquecera de destravá-la. Saio, então, correndo, vestindo a farda, vergada por outros convocados que me antecederam, de classes anteriores à de 1947, já que, naquela época, comprávamos o uniforme de algum reservista que concluíra o serviço militar. Uma costura aqui, um pequeno recorte ali, e pronto, a farda estava perfeita para mais nove ou dez meses de serviço, marchando garbosamente ou rastejando em busca de surpreender o inimigo, que jamais viria.
- O sargento Estrela mandou chamá-lo, disse o Monteiro, quando eu ainda girava a chave pelo lado de dentro da porta.
- Não acordei na hora, o desgraçado do despertador não disparou, respondi, tentando aliviar o peso da responsabilidade não cumprida.
Saímos, em marcha acelerada, pois o regulamento não deixava dúvidas quanto a essas ocasiões. Além disso, não havia motivos para prolongar uma expectativa que só tendia a crescer, principalmente ante novas observações do colega.
- Você não cortou o cabelo... E o sargento está cobrando!
- Ainda mais essa, respondi e acelerei mais o passo.
A distância, entre minha casa e o quartel, não era longa, mas dezenas de pensamentos me vieram à cabeça durante o percurso. A turma do Tiro de Guerra era composta, na sua expressiva maioria, por jovens de poucas letras. Eu me inseria dentre os quatro ou cinco ginasianos que, indiscutivelmente, constituíam “o braço direito” do sargento de Infantaria Jacy Estrela, Instrutor do Tiro de Guerra nº 250. Ele costumava dividir-nos em subgrupos e entregar o “comando”, de cada um desses, a um líder, atribuindo-lhe a responsabilidade dos ensinamentos sobre hinos, armamentos e ordem-unida.
Mas, aquilo não iria, de forma alguma, modificar a retidão da linha de disciplina e desvirtuar os objetivos do regulamento. Eu sabia que, inevitavelmente, seria punido, pois o princípio da igualdade deveria prevalecer e o nosso comandante não usaria de parcialidade no julgamento dos erros e atitudes de seus subordinados.
Chegamos, finalmente, à sede do Tiro de Guerra, onde todos já se encontravam em forma. À frente, o sargento Estrela, de mãos para trás, ordena que o Monteiro integrar-se ao grupo, enquanto observava a minha apresentação.
- Sargento, o soldado nº 57 se apresentando!
Ele observou-me em silêncio, aproximou-se lentamente, ainda de mãos para trás. Pouco mais de setenta atiradores presenciavam a cena, perfilados, em silêncio, como aqueles soldadinhos de chumbo do exército de minha infância.
- Você está doente, soldado?
- Não, Senhor!
- Esqueceu que hoje tinha instrução?
- Não, Senhor!
- Dormiu demais?
- Foi, sim, Senhor!
Ele virou-se, deu alguns passos e voltou a se aproximar.
- Por que não cortou o cabelo?
- Eu esqueci, sargento.
- Muito bem. Eu tenho aqui uma coisa que é muito boa para a memória.
E retirou do bolso da camisa cáqui, uma lâmina de barbear, envolta na sua embalagem original. Calmamente, como se o gesto fosse parte de um ritual, despiu-a do invólucro protetor e, segurando-a com firmeza, raspou “um caminho” em minha cabeça, criou um rastro desprovido de cabelos, partindo da nuca e indo até o limite da área que deveria estar raspada.
- Pode entrar em forma.
Ouviu-se um leve murmúrio e ensaios de risos.
- Alguém achou engraçado?
Silêncio sepulcral. Afinal, ninguém era trouxa e brincadeira tem hora.
- Atenção, Tiro de Guerra! Esquerda...! Volver! Ordinário...! Marche! Um, dois, esquerda, direita, um, dois, esquerda, direita...
E lá se foi o grupo de atiradores em direção ao Cemitério Velho, onde o nosso Comandante Jacy Estrela gostava de dar instruções. Às vezes, ordenava que nos escondêssemos e ameaçava jogar pedras naqueles que fossem vistos. Apenas ímpetos, emanados da força do dever.
Era um instrutor amigo, possuidor de um enorme coração! Na sua ausência, por pura brincadeira, seus subordinados tachavam-no de macumbeiro, tendo em vista a sua origem do município maranhense de Codó.
No dia seguinte, após a ocorrência do raspão de gilete na cabeça, eu adentrava o Camocim Merendas, o cabelo devidamente cortado, quando ouvi o chamado do sargento Estrela.
- Eu quero falar com você - disse ele - enquanto apoiava o pedal de sua bicicleta na margem da calçada.
Ali mesmo, mantivemos um diálogo e passei a admirá-lo ainda mais, depois de ouvi-lo dizer que, embora eu fosse um bom soldado, algumas atitudes eram, às vezes, necessárias, a fim de que a disciplina fosse mantida; que as correções deveriam ser aplicadas, igualitariamente, assegurando que o princípio de justiça fosse integralmente respeitado; que reconhecia a minha proveitosa parcela de contribuição, a exemplo de alguns outros colegas, mas era importante compreender que ele jamais poderia agir de forma diferenciada. Compreendi e orgulho-me de ter servido como seu subordinado, procurando agir, durante todo aquele período, como um de seus fiéis colaboradores.
O sargento de Infantaria Jacy Estrela, por não pertencer ao seleto quadro de Oficiais, não possuía nenhuma estrela sobre os ombros. Entretanto, durante os anos em que comandou o Tiro de Guerra nº 250, em Camocim, conquistou uma verdadeira legião de admiradores e deixou a Estrela do seu nome na constelação dos amigos da terra do aviador e pioneiro Euclides Pinto Martins.
Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado".