No final daquela rua, perto da estação ferroviária, voltada para o nascente, sorvendo em haustos profundos a refrescante brisa marinha, havia uma casa antiga, desprovida de beleza, mas acolhedora, cujos olhos tocavam o mar com infinita doçura.
Ali nós morávamos!
O casarão era similar à velha locomotiva diesel modelo 88 T da GE, projetada para vencer enormes distâncias, sem aparente esforço, nem tampouco cansaço, que comboiou, nos trilhos do tempo, alguns vagões especiais acoplados devidamente uns aos outros por um imenso corredor.
Em primeiro plano, ela segurava, com delicadeza, uma sala, decorada, na sua simplicidade, com diversas imagens de santos, que pareciam nos abençoar sempre, destacando-se, em seguida, a mobília, composta por um conjunto de cadeiras de palhinha, e, uma mesa oval, que rodeavam, atentas, uma estante cheia de livros.
Depois, a possante máquina ligava-se a dois quartos siameses, de telhado alto, que, pelas frestas, nos deixava entrever, nas manhãs perfumadas de sol, o coche das nuvens palmilhando ligeiro os caminhos do céu, entrelaçando, posteriormente, uma saleta com retratos que se dependuravam como se fossem alpinistas, perigosamente, pelas paredes pintadas de amarelo-claro.
Logo após, ela enlaçava, com cuidado, pela cintura, o salão de jantar, que se debruçava, tonto de emoção, sob um jardim, onde os colibris beijavam, com ardor, as flores vermelhas das papoulas.
Por fim, dava-se o engate perfeito a dois aposentos esquecidos, que recebiam, embora tímidos, o caloroso abraço do trem, cujo enlace estreitava-se ainda mais, quando a cozinha, com o valoroso fogão a lenha a crepitar, unia-se alegremente ao comboio.
E os anos correram tão velozes!
Tantas trilhas desbravadas!
Quantos sonhos acalentados!
Da festa da partilha de brincadeiras sem fim, dos risos de estonteante alegria dos irmãos, que, por vezes, acordamos as estrelas, transindo-as, subitamente, de mudo espanto, nada mais se ouve!
E o majestoso pombal, após sucessivas partidas das aves de arribação, silenciou, ficou tristemente vazio!
Eis que faltando um minuto para a meia noite, no apagar das luzes da minha existência, na tentativa de remontar o quebra-cabeças do passado, encaixando, desajeitadamente, as peças mais gastas, pobrezinhas, cujo brilho esmaeceu, surpreende-me a leveza das coisas que carrego, hoje, no coração, sabedor, afinal, que o ser transcende infinitamente o ter, e que, enquanto muitos simplesmente passarão, nós passarinharemos!
*Professor e Escritor Camocinense