domingo, 19 de maio de 2024

CHICO DOIDO

Por Inácio Santos* 

Airado, lunático, maluco, abestado, pinel. Alguns dos muitos nomes atribuídos àqueles que infelizmente têm distúrbios mentais, ou seja, os loucos.

No decorrer dos meus dias conheci vários deles, cada um com sua peculiaridade, pois muito bem propaga a sabedoria popular, que todo doido tem sua mania. 

Chico Doido foi um deles. Era assim que todos o chamavam. Chico era branco, estatura mediana, tipo caucasiano. Costumava levar consigo todo tipo de tralha (latas, um berimbau que nunca ouvi tocar, sacolas velhas, etc...). 

Não era muito de conversa; falava quase sempre monólogos ou frases entrecortadas. Não parava num só lugar, estava sempre andando de um lado para o outro. Tinha como lugar preferido o mercado público, embora esporadicamente também percorresse as ruas da cidade. 

Chico Doido não era de pedir, quando muito, pedia comida, se a fome apertasse, pois comumente sabia os lugares e as pessoas certas que lhes davam. Comia de tudo. 

Cenas que ficaram para sempre em minha memória, era quando os marchantes,  numa espécie de divertimento maldoso, ao vê-lo circulando nas imediações das bancas, lhe ofereciam vísceras cruas (tripas de porco, carneiro, boi). Chico Doido comia com avidez e gosto de quem saboreia algo delicioso. Enquanto algumas pessoas paravam para olhar, mulheres engulhavam, eles se divertiam dando sonoras gargalhadas. Chico tinha por vício (ou loucura), fumar restos de cigarros que juntava do chão. Às vezes comia as guimbas (baganas).

Este era mais ou menos o perfil de Chico Doido. Não mexia com ninguém. Vivia aleatoriamente em seu tresloucado mundo. 

Certa feita, resolveu dormir no cemitério velho, atual Rodoviária, dentro de um túmulo que por estar desativado há muitos anos, encontrava-se aberto. 

Talvez tenha feito isso por ser época invernosa, ou sabe-se lá o que se passa na cabeça de um doido. O fato é que ele à noite utilizava a catacumba para dormir. Ao amanhecer, já a caminho do mercado, descia pela Rua Independência, dando sempre uma paradinha em nossa casa (na época a parte da frente era mercearia). Minha mãe (de saudosa memória), sempre lhe dava o desjejum: Pão, café, tapioca, cuscuz. Isso acontecia quase todos os dias, pois é sabido que doido não tem regularidade, não pega fila, tem passagem livre.

Certo dia, Chico Doido chegou agitado. Ele que não era muito de falar, estava falando, gesticulando, como se algo o perturbasse ainda mais. Minha mãe lhe ofereceu comida, mas ele rejeitou, estava transtornado. Ela que o conhecia de há muito, aos poucos foi lhe acalmando, até que ele resolveu contar o que havia acontecido:

Durante uma noite, dormia ele na dita catacumba, quando três mulheres vestidas de branco, acordaram-no e disseram:

- Levante-se! Aí não é seu lugar! Procure outro local para dormir!

Qualquer outra pessoa teria desmaiado, ou sairia correndo. Mas doido é doido! Chico apenas virou de costas e resmungou:

- Eu durmo onde quiser. Só que de acordo com o mesmo, durante toda a noite foi abordado diversas vezes, sempre as mesmas mulheres insistindo:

- Acorde! Vá embora, pois este não é o lugar certo para você dormir. Chico invariavelmente dava-lhes a mesma resposta.

- Só saio daqui quando o dia amanhecer!

Realmente. Só saiu quando amanheceu, mas o fato é que algo mexeu com ele, pois a partir desta data nunca mais voltou a dormir no referido local.

Chico Doido continuou vivendo sua vida tresloucada, vindo a falecer após alguns anos, por ter ingerido uma significativa quantidade de sal, prova mais que suficiente que realmente era doido.

Quem de nós também já não cometeu algum tipo de loucura, né?

Pois não dizem os entendidos: "Que de médico e louco todo mundo tem um pouco". 

*Radialista, Compositor, Escritor e ex-Presidente da Academia de Ciências, Artes e Letras de Camocim