sábado, 15 de junho de 2024

A BODEGA

Por Inácio Santos* 

Mergulhando em minhas memórias e reminiscências, comparando coisas não tão antigas, visto que, o pêndulo do tempo não para jamais. 

Surpreendo-me ao ver como as coisas aconteceram de forma tão prodigiosamente rápida, se levarmos em conta a efemeridade do tempo, em relação ao próprio tempo.

Senão vejamos: Transporto-me em minha utópica máquina do tempo, e vejo-me ainda moleque na minha querida rua da Independência, na linda e bucólica cidade de Camocim, rua que na época nem calçamento tinha, era terra frouxa. 

Energia, só da usina de força. Os postes eram trilhos de ferro fincados na areia. Ali onde hoje existe aquele imponente prédio (INSS), havia uma quinta de cajueiros que tomava quase todo o quarteirão. 

Pois bem, nossa casa, ainda hoje no mesmo local, recém-construída, era também ponto comercial. Na sala da frente existiam duas portas onde se instalou a famosa bodega. 

Nela vendia-se coisas que hoje são quase impossíveis serem encontradas. Destaco neste relato algumas dessas verdadeiras e raras preciosidades.

Cambos de sardinhas (peixe seco) que vinham da praia das Almas (Bitupitá), enfiados em palha, pendiam dependuradas de um lado para o outro da bodega numa espécie de varal. 

O cheiro ainda hoje me entra pelas narinas salivando a boca. Rapaduras provenientes da serra, detentoras de um doce inigualável. Para quem não podia comprar uma inteira, dividia-se a metade, ou um quarto, que era a metade da metade. 

Tijolos saborosíssimos, explico: Eram feitos do melaço da cana, recheados de coco e entrecasca de laranja. Uma delícia. Banha de porco vendia-se no retalho (óleo comestível era raro). Cada pessoa trazia o seu vasilhame. 

Como era difícil quem tivesse energia elétrica em casa, mesmo os que tinham, pois a luz da velha usina só ia até as nove da noite, o querosene era artigo necessário para as lamparinas e candeeiros. Vendia-se o litro, meio litro, um quarteirão, e até meio quarteirão (quarteirão: utensílio feito de flandres que servia para medir gás). Uma espécie de bomba também feita do mesmo material acima citado era introduzida na lata do produto (querosene) e manuseada em forma de vai-e-vem, fazendo jorrar o líquido nos vasilhames.

Cigarro já existia, mas pouco era procurado, pois o fumo de rolo era preferido, tanto o mais fino e seco para picar e fazer cigarro (porronco), bem como o fumo grosso e melado (Arapiraca), que era mais apropriado para mascar (ato de colocar um pedaço de fumo na boca e ficar mascando). 

Para cortar fumo não se usava faca, e sim o "macaco" (uma espécie de lâmina em forma de guilhotina horizontal, feita especialmente para tal fim); café moído havia, mas raro era o freguês que comprava. O mais procurado era o café em caroço, que vinha em sacas de sessenta quilos. 

 Vendia-se no retalho. As pessoas torravam em casa, adoçando com rapadura ou açúcar. Valia a pena o esforço. De longe se sentia o cheiro do preparado. 

O gosto era forte, encorpado, só sabe quem já provou. Outro produto procurado era a famosa goma (amido puro extrafino extraído da mandioca), que também vinha em sacas, sendo usada para bolos, broas, tapiocas, papas, mingaus. Não faltava a deliciosa e forte gordura de gado, produto de primeira, enlatada. Vendia-se também no varejo, ótima para caldos e remates. Dizia-se curar até tuberculoso, além de seu extraordinário poder afrodisíaco.

Por conseguinte a bodega era repleta dos mais curiosos produtos, a exemplo de: lamparinas de flandres ou vidro, estilingues (baladeiras), pentes da vovó (pente de osso em forma de meia-lua, usado para prender o coque das senhoras). 

Utensílios de palha: Cestas, bolsas, abanos, (espécie de leque para avivar fogareiro), alguidares de barro, penicos, panelas de ferro, uma enorme variedade de perfumes (desejo, príncipe negro, entre outros), brilhantinas (gel perfumado para cabelo). As mais famosas eram as marcas: Glostora, parisiana e suspiro de granada. 

Atente-se para o detalhe de que tanto o perfume, quanto a brilhantina, eram também vendidos no varejo. Era comum quando havia forró no final de semana, a caboclada comprar alguns trocados do seu perfume e brilhantina preferidos, e usar ali mesmo. Após, compravam um espelhinho redondo (de bolso), um pente, e já saíam da bodega  prontos para se atracar com as nêgas (expressão dos próprios).

Poderia eu divagar horas e horas, preencher folhas e folhas, do que existia naquelas prateleiras, dos costumes e manias que aconteciam na velha bodega, e que hoje não mais existe.

Quando ponho a tecer minhas recordações, é que vejo a enorme diferença, e quanta evolução se fez em tão pouco tempo. Fico deveras estupefato ao sentir como esta coisa chamada progresso andou tão depressa. 

 Será que foi a tal globalização? Sinceramente não sei. Mas estou preparado para tudo, nada mais me assusta, até mesmo quando pela televisão, vi o homem voando na Marquês de Sapucaí, apenas com uma roupa especial e um pequeno foguete propulsor atrelado às costas, coisa que víamos no filme de ficção Guerra nas Estrelas.

Nada nos resta a fazer, a não ser apertarmos o cinto e enfrentarmos a realidade. Agora, me desculpem! 

Não sou e nunca serei contra a tecnologia, mas é que sou saudosista. Talvez por isso, a velha bodega me traga tantas saudades e recordações.

*Radialista, Compositor, Escritor e ex-Presidente da Academia de Ciências, Artes e Letras de Camocim