domingo, 30 de junho de 2024

BOGARI

Por Avelar Santos*

Da casa espaçosa, aconchegante, de meus avós maternos, Raimundo Anastácio e Marieta, que flertava puerilmente, sem se cansar, um sisudo serrote, em Massapê, eu me lembro muito bem.

Duas coisas, porém, trago ainda mais nitidamente gravadas nas retinas cansadas de meus olhos: o quintal amplo, com pedras emergindo do solo, em toda sua extensão, ocupado por uma árvore solitária, que lhe sombreava um pouco, onde vovô costumava guardar, zelosamente, os seus animais de montaria, e de carga; recordo-me, também, do pequenino jardim, que olhava a cozinha sem nenhuma timidez, de frente, no qual um imenso pé de bogari se destacava, aromatizando a casa inteira com o seu perfume embriagador.

De manhãzinha, ao raiar da Alva, os passarinhos vinham brincar nos galhos retorcidos do bogari, e ali ficavam, ensaiando um balé acrobático, a saudar um novo dia, com si bemóis, sustenidos e trinados,que quase lhes consumiam o fôlego diminuto.

Nessa bendita hora eu acordava e, da minha rede, postada na saleta, divisava, pelas frestas da janela, a silhueta de minha avó, ofertando, solícita, aos pequenos invasores, o repasto cotidiano de frutas que eles consumiam, assim, num piscar de olhos.

Quando o cheiro de café quentinho (e de tapioca de coco) anunciava que a refeição matinal estava pronta, levantava-me da rede, sem pressa alguma, despreocupada do mundo, aspirando a plenos pulmões a delícia do aroma do bogari, que invadia resoluto as minhas narinas, num tropel de louca cavalgada, indo se esconder, ligeiro, nas dobras dos neurônios de um menino – repleto de sonhos e de ideais.

À mesa, com seu ar bonachão, cativante, vovô contava estórias, rodeado por meus irmãos, abraçado à minha amada mãe – cujos olhos faiscavam diamantes de tanto contentamento.

Vovó, por sua vez, ficava a nos olhar de forma complacente, rindo de nossas brincadeiras, atenta ao seu irascível fogão à lenha, sabedora de suas diatribes e peraltices.

E o dia transcorria, alegremente.

Pelas ave-marias, à noitinha, vovô voltava de sua faina, e, mesmo cansado até os ossos, ainda encontrava ânimo para brincar conosco!

Que maravilha era aquilo!

Os anos galoparam numa velocidade vertiginosa!

Não sei para quê!

Entretanto, após quase meia eternidade, ainda sinto o perfume inconfundível das flores – brancas e pequeninas – do majestoso pé de bogari da vovó, e ainda ouço a voz doce e pausada de meu avô, bem como o riso infantil de meus irmãos.

Hoje sou um reles cavaleiro andante, destituído de toda pompa, e glória, sem armadura alguma, a enfrentar, com as mãos nuas, moinhos de vento, na vã tentativa de recompor coisas perdidas no labirinto infinito da vida, onde o Minotauro Tempo a tudo e a todos impiedosamente devora.

Não há mais casa, nem bogari!

Há muitos invernos, os meus amiguinhos alados bateram em definitiva e insólita revoada. Meus avós, e, uma flor frágil, singela,radiosa, inesquecível, bela, Margarida,minha amada mãezinha, partiram, que pena, para a última viagem. Tudo agora é só silêncio – e os ecos imorredouros dos tempos idos da mocidade fagueira calam fundo na minh'alma.

O que fazer se o passado tragou no seu vórtice voraz tanta felicidade? Nada!

Somente ficaram as recordações do bogari amigo – e dessa época venturosa da meninice.

Assim, a saudade é um pijama velho – e bom – que retiro das gavetas gastas e empoeiradas da mente, com o coração a sair pela boca, e, os olhos rasos d’água, vestindo-o. nas noites frias, para me aquecer com o inextinguível fogo das doces lembranças, que alumia, com sua fosforescência mágica, a negra e densa solidão que ora me rodeia, teimando cruelmente em não querer partir.

*Professor e Escritor Camocinense