sábado, 22 de junho de 2024

CARA-PRETA OU FUNDO-MOLE

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

Em todos os municípios do Ceará e, provavelmente, na maioria dos municípios brasileiros, existem fatos pitorescos relacionados à política de cada um desses locais, alguns devidamente registrados, enquanto outros seguem céleres sobrevivendo através do canal de comunicação “boca a boca”, mantendo a informação e preservando a tradição de seus costumes. 


No entanto, a comunicação oral torna os fatos e suas origens passíveis de distorções, não necessariamente por maldade de seus interlocutores, mas, provavelmente, por desgaste dos detalhes que fazem a história, provocado pela repetição, a cada diálogo, modificando os conceitos ou suas interpretações, sem deixar, todavia, indícios cabais das alterações praticadas, ao longo do tempo.

Em Camocim, até o ano de 1950, as coligações partidárias e as alianças, firmadas pelas lideranças políticas de então, possuíam uma composição da União Democrática Nacional, onde se destacavam os líderes políticos Deputado Murilo Rocha Aguiar e Alfredo Othon Coelho no mesmo palanque e desfraldando a mesma bandeira pelos destinos daquele município. 

No entanto, os ventos da mesma direção política começaram a soprar para horizontes de lados opostos, quando surgiram divergências com relação às preferências em favor da candidatura a Prefeito nas eleições de 1950. 

A partir de então, por ocasião de uma assembleia visando discutir o assunto, surgiram discordâncias que culminaram com uma dissidência, levando a que Murilo Aguiar convocasse os seus aliados para abandonar o local e se deslocarem diretamente, de onde estavam reunidos, para uma nova assembleia no local que seria, a partir daquele momento, o seu mais fiel e tradicional reduto: A icônica Praça da Estação. 

O resultado de tal ruptura foi o lançamento da candidatura de Setembrino Fontenele Veras para prefeito, apoiado pela liderança encabeçada por Murilo Aguiar, que enfrentou e derrotou o adversário lançado pelo líder Udenista Alfredo Othon Coelho, na eleição de 1950. E, ao longo das décadas que se seguiram, as duas maiores forças políticas de Camocim mantiveram-se como opositoras e consolidaram suas trajetórias com acirradas disputas eleitorais.

Em um curto espaço de tempo, contado a partir do esfacelamento das alianças, essas duas forças políticas passaram a ser identificadas por seus respectivos apelidos, ambos emergentes de conversas e boatos de origens desconhecidas, consolidando as históricas alcunhas das duas tradicionais correntes partidárias de Camocim. 

Aos filiados do antigo Partido Social Democrático – PSD, liderados por Murilo Aguiar, coube o epíteto de Cara-Preta, enquanto os filiados da antiga e extinta União Democrática Nacional – UDN receberam o título de Fundo-Mole, ambos pronunciados e grafados quase sempre no singular, mesmo quando o termo se achava reconhecidamente no plural.

Algumas versões foram surgindo, buscando explicar as origens dos tais apelidos, porém, apenas um deles apresentou uma explicação convincente, ou com base mais fundamentada, como veremos em seguida. 

Sobre aquela alcunha de Cara-Preta, que identificava os Murilistas, havia quem defendesse a ideia de que a mesma estaria ligada à presença de algumas manchas pretas no rosto do líder Murilo Aguiar. 

Particularmente, não dou credibilidade a essa versão, pois estive fisicamente próximo a ele inúmeras vezes, reconhecendo-o como um homem de pele clara e isento de qualquer mancha escura em seu rosto. 

Desfrutei da amizade de alguns de seus filhos, principalmente Francisco Aguiar, frequentando sua casa e estudando juntos, na mesma sala da Associação Comercial, na Rua Dr. João Tomé, onde funcionavam as séries primárias do Ginásio Padre Anchieta. 

Foi este um período durante o qual o Senhor Murilo Aguiar foi Prefeito de Camocim, residindo na nossa então Rua Senador Jaguaribe. Outros observadores, entretanto, defendiam a tese de que, em décadas passadas, houve uma malograda tentativa de emboscada a um importante partidário do Senhor Alfredo Coelho, cujos autores se encontravam, por ocasião do atentado, com máscaras pretas ou rostos pintados de preto. 

Com estas características, começaram correr as especulações e boatos, levantando suspeitas a adversários políticos, acusando-os de serem eles os caras com o rosto preto, ou com a cara preta. Adveio, então, desta longa evolução, os termos que se consagraram na política camocinense:

– “Os cara preta são eles”, ou “eles são os cara preta”, instalando-se, segundo alguns, como “ele é Cara Preta”.

No entanto, se buscarmos detalhes sobre a formação da teoria sobre esta versão, parece-nos não existir nada palpável, haja vista a falta de consistência nos passos de sua evolução formada por conjecturas, especulações e boatos. Faltam, evidentemente, bases para credibilidade, mormente pela existência de versões onde se detecta indícios da verdade.

Existe, ainda, uma terceira versão, sobre Cara-Preta, dando conta de que “o apelido veio do rosto escuro e manchado de um capataz que acompanhava Murilo a todos os lugares, como garantia de segurança em tempos belicosos”. 

Esta é considerada a versão mais provável na opinião de Francisco Aguiar, conforme opinião que ele expressou sobre o assunto, para inserção no livro ‘MURILO ROCHA AGUIAR – Amor à Política por toda vida,” autoria de Angela Barros Leal, tornando-se, por conseguinte, na minha modesta opinião, a que alcança maior aceitação, pela lógica e pela credibilidade da fonte. Ademais, esta versão nos permite meditar sobre a relação, existente ou não, de uma distorção de notícias transmitidas “boca a boca”, confundindo aquela versão, praticamente desacreditada, que faz referência a manchas pretas no rosto do Deputado Murilo Aguiar.

No que concerne àqueles que detinham o apelido de Fundo-Mole, a explicação mais divulgada refere-se às calças frouxas nas partes traseiras de homens pertencentes à família Coelho, ou mais, dizia-se que os mesmos tinham as nádegas muito magras, expressa na linguagem coloquial como “bunda batida”, deixando o fundo das calças de linho bastante frouxo, o que derivou para o termo Fundo-Mole.

Vale registrar que estas alcunhas logo deixaram de ser pejorativas. Em ambos os lados houve aceitação dos mencionados epítetos e nenhum dos dois se intimidou, incorporando-os com naturalidade e propriamente se identificando ao estilo “eu sou Cara Preta” ou, por outra, “eu sou Fundo-Mole”, ditos e repetidos com orgulho.

Nos tempos atuais, estas marcas que fizeram parte da vida política de Camocim, apresentam-se esmaecidas. Já não visualizamos o seu antigo vigor. 

Houve uma miscigenação, no sentido de aproximação de antigos adversários, ou descendentes destes, fruto de coligações, mudanças de partidos ou, até mesmo, casamento entre pessoas de famílias distintas, as quais foram adversárias políticas em outros tempos.

Num olhar retrospectivo, a fim de proceder uma análise simples das relações no ambiente sócio recreativo entre Cara Preta e Fundo Mole, visualizamos em Camocim, em sua fase áurea de uma sociedade festiva e ativamente participante, três bons clubes, além do Clube AABB, que surgiu após os melhores tempos inseridos no contexto que ora analisamos; e de alguns outros clubes menores e com programação de atividades mais simples. 

Sobre esses três que colocamos em lugar de destaque, a Associação Social e Recreativa Balneário Sport, domínio dos Fundo-Mole, não era frequentado normalmente pelos expoentes Cara-Preta.

Por outro lado, o Camocim Club, domínio dos Cara-Preta, a situação se invertia, ou seja, os expoentes Fundo-Mole ali não marcavam presença.

Por ser o mais fechado e o mais luxuoso entre todos, o Camocim Clube foi, em seus bons tempos, denominado “O Príncipe”. Mas, os tempos são outros, e sua sede própria atualmente é propriedade de Pessoa Física.

Em uma posição praticamente neutra, o Comercial Clube de Camocim, “o Clube das Grandes Realizações Sociais”, não cultivava preferência político partidária. 

Assim, ele não era alvo de nenhuma rejeição, tornando o ambiente de sua sede agradável à sociedade camocinense, de forma igualitária, sem que isto lhe exigisse qualquer esforço ou sacrifício.

Parece-nos que o tempo foi austero, também, para o Comercial Clube de Camocim, pois há prenúncios de que o seu destino será o mesmo já definido para “O Príncipe”: Jamais voltará a ser o Clube Social que um dia foi.

Finalmente, a Agremiação Social e Recreativa Balneário Sport, o mais romântico dos clubes camocinenses, hoje não passa de tristes e silenciosas ruínas a se espelharem nas águas do estuário do Rio da Cruz, como monumento ao apogeu que todos representaram no passado.

Texto extraído do livro "Memórias de um Saudosista"