domingo, 14 de julho de 2024

O RELOJOEIRO DE AMSTERDÃ

Por Avelar Santos*

Logo que descera do trem, na Amsterdã Central, naquela manhã de nevoeiro, o homem de cabelos ruivos - e aspecto nada agradável - dirigiu-se apressado à Rua Damrak, que ficava nas proximidades dali, onde alguém lhe indicara um velho relojoeiro, que, com uma boa pitada de sorte, quem sabe pudesse se interessar pelo seu trabalho.

Vincent saíra de Zundert, ainda de madrugada, no primeiro comboio ferroviário, com o coração sacolejando incertezas, e, durante todo o percurso dos 130 km, preferira cochilar, perdendo, assim, a beleza da paisagem, filtrada na sua grandiosidade pelas vidraças espessas das amplas janelas, que não se cansavam de mostrar o refulgir cheio de paz dos campos de tulipas, e, aqui e ali, regatos de água cristalina que serpenteavam, alegres, pelos bosques.

Na véspera de sua partida até à capital, Theo, seu irmão mais novo, num ato de generosidade, adquirira um pequeno esboço que retratava moinhos de vento, pagando-lhe alguns sturvers, por que ele certamente recusaria a simples oferta do dinheiro para a viagem.

Movido pela ansiedade que o consumia, há meses, estampada por inteiro nos seus olhos encovados, sem luz, que expressavam toda a angústia da alma, ele escolhera com redobrado esmero algumas pinturas a óleo, levando também, consigo o desenho de "A Noite Estrelada", para mostrá-los ao mestre Albart.

Ao adentrar a loja, repleta de relógios de todos os formatos, identificando-se respeitosamente ao proprietário, Vincent, com a esperança agitando-lhe febrilmente as mãos trêmulas, desenrola o embrulho de suas preciosidades, exibindo-as todas com fervor ao ancião.

No entanto, por cruel ironia, este não se agradara do que vira, e, tentando ser cortês, fala que por ora não comprará nada. Talvez numa outra oportunidade.

Aquilo abalou ainda mais a frágil saúde mental de Van Gogh, que sai do recinto remoendo uma fúria silenciosa, voltando para sua pacata aldeia naquele mesmo dia com sombras perturbadoras da morte a rondar-lhe insistentemente o espírito.

E, naquele transe aflitivo, enquanto percorria o mesmo caminho que o levara até o artesão das horas, o bonde do pensamento tragou-lhe ao longínquo passado, vendo-se de novo menino a ouvir os resmungos insistentes de seu pai, pastor calvinista, por qualquer dá cá aquela palha, que exigia a perfeição nas atitudes dos filhos através de uma rígida educação.

Por isso, rememora com nostalgia, tivera uma infância difícil, tornando-se uma criança rebelde - e sem amigos.

Ato contínuo, vê-se aos16 anos indo trabalhar com o tio na Galeria Goupil, em Haia.

A cabeça dói ao recordar a demissão injusta do emprego, fato que o levou para Etten, onde reencontra sua família, mas, uma vez mais, não se sente acolhido ali como gostaria.

Com isto, torna-se cada vez mais depressivo, sofrendo seguidas crises nervosas, agravadas por sua constante solidão.

Bem perto, agora, da gare, relembra, sem saudade, suas idas e vindas, pelo continente europeu, sem se fixar em parte alguma.

Por fim, desiludido com o mundo da arte, Vincent decide finalmente seguir a carreira paterna, ingressando na Universidade de Amsterdã para fazer os seus estudos teológicos iniciais, conseguindo, tempos depois, o lugar de pregador missionário nas minas de carvão de Borinage, na Bélgica.

Com uma estranha sensação de sofrimento a percorrer cada fímbria de seu corpo, ele relembra que ao se deparar com a miséria extrema daqueles trabalhadores tivera a primeira grande agrura espiritual, de muitas que se seguiram no rio caudaloso dos anos, vindo a perder por completo a fé em Deus.

Dirigindo-se aos vagões, com um sorriso amargo, relembra dos tempos idos de seus estudos de anatomia e perspectiva em Bruxelas, bem como de sua partida para Haia, um ano depois, pintando, nesse período, aquarelas, onde apareciam marinheiros, pescadores e camponeses.

Por esse tempo, recorda quase aos prantos, escrevera uma carta endereçada ao irmão caçula. da sua afeição, onde dizia com todas as letras que o seu maior desejo era pintar a vida em todo o seu esplendor.

Chorando nervosamente, ao andar pelas ruas centrais da grande cidade, Vincent lembra que voltara certa feita para a casa dos pais, onde passara os dias na companhia insuperável de livros clássicos ou pintando.

Bem perto da gare, recorda-se de Paris, de sua gente jovial, em especial de seu amigo Paul Gauguin. 

Recorda-se, com esforço, do seu estilo vibrante, pintando, em dois anos, 200 quadros, destacando-se: Autorretrato (1887); Retrato de Père Tanguy (1887-1888); Os Girassóis (1888); Quarto em Arles (1888).

Sem poder conter mais a emoção, que aflora num riacho de sentidas dores, relembra a briga que tivera com Gauguin, ao saber que sua amante havia se envolvido com ele, o que o levou ao ato insano de agredi-lo com uma navalha.

Com remorso do que sucedera, vem a recordação doída do seu gesto tresloucado de cortar a própria orelha, enviado-a num envelope para o pintor francês.

Sentado na poltrona do trem, que caminha sem pressa rumo ao interior, recorda-se de sua internação no Hospital de Saint-Rémy-de-Provance.

Lá, relembra, sonolento, pouco a pouco transformara o seu quarto em um ateliê, produzindo sem parar uma infinidade de quadros.

E revê Signac, um amigo pintor de Theo, que ficara Impressionado com a sua pintura ao visitá-lo, naquelas condições, esforçando-se como podia para levar amigos para apreciarem os seus quadros.

Nesse interregno, relembra, o jornal Mercúrio de França rasgara eloquentes elogios a ele - e uma exposição de suas obras é organizada na Galeria de Bruxelas, havendo somente a venda do quadro: "A Vinha Vermelha" (1888), o único durante toda a sua vida.

Tudo aquilo atropela os sentidos na sua mente cansada.

Boiando, afinal, nos flocos da nevasca que começara a rugir. impaciente, ele chega ao lar.

A história registra que após a saída de Van Gogh de Saint-Rémy, ele vai para Auvers. Por esse período, pinta centenas de desenhos e mais de 40 quadros, entre eles: Campo de Trigo com Corvos (1890) e A Igreja em Auvers (1890).

Morreu praticamente no anonimato, depois de uma existência atormentada que o levou ao isolamento e finalmente ao suicídio, com um tiro no peito, na cidadezinha de Auvers.

Quis o destino que sua fama só acontecesse depois de sua morte.

Grande parte de sua vida está descrita nas 750 cartas que escreveu para Theo, em que fica mais do que evidenciado a forte ligação entre os dois irmãos.

No dia de sua morte, no sótão da Galeria Goupil, em Paris, havia mais de 700 quadros seus, que se amontoavam, tristemente, a um canto, à espera de um comprador.

Vincent van Gogh teve um final melancólico. Logo ele que colocara nas telas muito mais que somente brilho e cor - pintando mesmo a sutileza da inigualável magia da vida.

*Professor e Escritor Camocinense