Devia ter seis anos quando ouvi falar, pela primeira vez, sobre a travessia do rio.
Lembro-me que pegava o sol, que entrava de mansinho, pelas frestas das telhas, caminhando devagar, pelo chão batido da sala, deixando-me colher conchas de luz, que se derramavam, intactas, nas minhas mãos pequeninas.
Eis que um retrato, que se pendurava, meio torto, ao lado de outros, na parede do amplo corredor, resolveu sair do seu lugar, talvez para ter notícias do mundo, fazendo uma pirueta acrobática, no ar, antes de se espatifar perto de mim.
Nele, via-se a fotografia de um homem moço, de olhar triste, que não se cansava de me encarar toda vez que eu entrava ou saía de casa.
Um brilho de um sorriso parecia alvejar sua bela face, enquanto os olhos, que cintilavam inteligência, diziam-me estar atento às minhas peraltices.
Ao ouvir aquele barulho, minha mãe veio correndo da cozinha, até onde eu me encontrava, pensando que eu sofrera uma queda, devido teimar em não acreditar numa tal de lei da gravidade, desafiando, aqui e ali, os perigos das alturas.
Ah! Como era bom subir na copa da goiabeira, perto da cacimba, no quintal, rodeado pelos passarinhos, que não se importavam mais nem um pouco com a minha presença, para divisar o mar perder-se, ao longe, no horizonte infindo.
Ao descer da árvore amiga, depois da contemplação silenciosa, imitando o Tarzan, saltava de galho em galho, vindo a cair, por vezes, ganhando de presente manchas roxas pelo corpo.
Como vivia colorido da cabeça aos pés dos tombos frequentes que levava, qualquer baque surdo chamava-lhe a atenção.
Ao me ver são e salvo, brincando, como se nada tivesse acontecido, com emoção na voz acercou-se de mim, e, afagando meus cabelos, disse que me comportasse.
Ao olhar para ela, notei que lágrimas boiavam, serenas, no seu rosto, e, num sussurro, exclamou: Meu pobre irmão!
Aquilo foi de doer o coração!
Sem jeito, por tê-la visto chorar, fiquei paralisado.
Em seguida, ela sentou-se numa cadeira de palhinha, que jamais se cansava de olhar a rua, com o retrato com a moldura quebrada nas suas mãos.
Então, recordando-se dos fatos pretéritos, falou-me que ele havia partido há tempos para a outra margem do rio - e que sentia muito a sua falta.
Parei de brincar, e procurei palavras para consolar a sua dor, mas não as encontrei, nada conseguindo falar.
A partir dali, passei a imaginar como seria essa navegação de cabotagem que faria, tambem, um dia.
Mas, logo em seguida, mudava o rumo do pensamento, e voltava ao cotidiano das coisas, na certeza que aquilo era algo muito distante ainda.
E o tempo passou, levando consigo os sonhos do menino!
Por não ser um bom velejador, sempre tive medo de atravessar, sozinho, para o outro lado do rio!
Agora, vejo a canoa, ancorada no cais, esperando-me, com fidalguia, para o embarque - e, estranhamente, estou calmo.
Vou sentir saudades da revoada das garças, ao sol poente, procurando abrigo, nos mangues, poema sublime de Deus, quando tiver de desbravar a outra margem das águas.
Honra e glória, a Ti, Senhor!
*Professor e Escritor Camocinense