domingo, 22 de setembro de 2024

O PASSADO É PARA SEMPRE

Por José Maria Trévia 
(Escritor Camocinense)

A foto mostra o autor, em setembro de 1969, ao lado do Navio Araruama, em maré baixa, acostado ao cais do Porto de Camocim. 

Os últimos momentos da madrugada traziam o vento frio e gostoso, que vinha deslizando sobre o estuário do Rio da Cruz, roubando-lhe um pouco da umidade e espalhando um pouco do cheiro de mar. 

Nas minhas mãos, uma mala em cada uma, e uma caixa de sapatos, debaixo do braço, e mil pensamentos na cabeça, enquanto eu caminhava em direção à Estação Ferroviária. Na velha esquina do Senhor Fernando Cela, abriu-se à minha frente a porta larga da Praça, que recebia a iluminação, refletida da Estação, gerada na caldeira das velhas oficinas, quase centenárias. Atravesso a avenida e adentro a Estação, iluminada e quase vazia, dirigindo-me ao guichê e adquirindo uma passagem para Fortaleza. 

Por um instante eu examinei aquele pequeno retângulo de papelão grosso, onde o marcador de aço cravara a data de 29 de março de 1967. Era o começo, eu sabia, de uma longa estrada em que eu decidira caminhar, ao encontro de desafios e novas esperanças.

Desde o início daquele ano, aumentara a pressão que eu fazia, sobre mim mesmo, por uma tomada de decisão referente à minha mudança para Fortaleza. Há mais de um ano eu havia concluído o meu Curso Ginasial e mais recentemente cumprira a minha obrigação com o Serviço Militar, no Tiro de Guerra nº 250, em Camocim. Dentro de poucos meses eu estaria completando 20 anos, e minha preocupação era enorme no que dizia respeito ao modesto nível de estudo que eu havia alcançado em minha cidade, onde não havia opções para prosseguir.

Eu trabalhava com meu pai, no Comércio, mas havia uma indefinição nos seus planos, considerando a sua iminente aposentadoria. E tudo isto me inquietava, vendo o tempo exaurir-se e a continuidade de meus estudos se distanciando. 

Eu poderia optar pelo comércio em Camocim, se houvesse rumos melhor definidos, mas apenas planos vagos não me despertavam interesse numa espera indefinida. Desta forma, com tantas indefinições, eu decidi que não iria mais adiar a escolha dos rumos de minha vida.

Os primeiros meses daquele ano seriam decisivos para os meus propósitos. Janeiro já se despedira e fevereiro avançava célere ao encontro do início do ano letivo. Restava-me pouco tempo e nada de novo surgia em meu horizonte, exceto nuvens brancas e distantes. Meu pai mantinha-se como paciente meditador sobre o assunto. 

Quem sabe, até desejasse uma manifestação de minha parte, mas eu não tinha sido educado para ousar uma iniciação de diálogos dessa natureza. Aos amigos mais próximos, ele comentava sobre os seus planos para quando se aposentasse, mas não os detalhava, embora incluindo-me como o seu parceiro, substituto preferido, talvez o único. 

Mas, esquecia que, como participante ativo, eu deveria ser envolvido nas proposições do Projeto, desde o seu início, considerando que, no tabuleiro daquele jogo, eu representava a peça que mais correria risco, caso ocorresse uma decisão equivocada.

A celeridade do tempo se confirmava e já vivíamos a segunda-feira do dia 20 de março, daquele ano. Estávamos na loja, quando meu pai falou sobre uma viagem que ele faria no dia seguinte:

– Amanhã eu vou a Fortaleza. Tome conta da loja, eu volto sexta-feira.

– Sim, senhor, eu respondi.

Quatro dias depois, no meio da tarde de sexta-feira, meu pai retornou da viagem. Entrou na loja apenas de passagem, avisando que estava indo para a Fazenda Santa Fé, em Barroquinha, como fazia todas as sextas-feiras, retornando no domingo.

– Papai, eu queria conversar com o senhor... Disse-lhe, meio constrangido.

Ele, então, sentou-se e falou:

– Diga. O que é que você quer?

– Eu quero dizer para o senhor que eu vou embora para Fortaleza.

– O quê você vai fazer lá? Indagou, calmamente.

– Eu vou trabalhar e estudar.

Ele manteve-se calado, meditativo, mexendo nos papéis da mesa, um hábito que praticava, para ajudá-lo a pensar.

– Eu tinha planos aqui, para você. Mas, você quer ir, não posso impedir. Quando você vai?

Eu respondi que gostaria de ir logo na segunda, principalmente por causa da matrícula no colégio. Ele, então, ponderou, que voltaria segunda-feira da Fazenda, não havia tempo... E sugeriu que eu deixasse para viajar na quarta-feira. E, assim, ficou combinado.

Foi este, fielmente aqui retratado, o diálogo que tivemos, sobre o meu “aviso prévio”, que poderia ter ocorrido de várias formas, com desfechos diferentes, embora haja quem defenda que o meu destino já estava traçado. Talvez, diriam outros, que eu havia escolhido o meu caminho.

E, agora, ali eu estava, no banco do vagão do trem, sozinho, esperando que o Agente da Estação puxasse a corda do sino e badalasse a terceira e última chamada, precondição para a partida da composição.

O dia ainda não havia clareado, e o trem, apitando, passou ao lado das oficinas, ultrapassou o portão, que limitava a área de manobras, e beirou o Lago do Portão, como chamávamos aquele em que nos banhávamos, sem que nossos pais soubessem, nos longínquos dias de minha infância.

Pouco a pouco o trem foi aumentando a sua velocidade. Na última plataforma, eu fiquei observando a Estação e suas luzes, cada vez menores e mais distantes. O dia clareou e meus olhos já não contemplavam mais, a minha terra. Somente trilhos, e o seu ponto de fuga.

Ao cair da tarde o nosso trem adentra a Estação João Felipe, em Fortaleza. Aguardando a minha chegada, o meu irmão Toinho, para levar-me ao Hotel Arraes, onde também eu iria morar, no cruzamento da Antonio Pompeu com Avenida da Universidade. Ainda ativo na Marinha, ele chegara há poucos meses, transferido de Natal para Fortaleza e engajado na Capitania dos Portos.

À noite, no mesmo dia de minha chegada, eu já me matriculara no Colégio João Pontes, na Rua Jaime Benévolo, cruzamento com a Rua Bárbara de Alencar, graças à intervenção de José Maria Veras Filho, a quem reservo a minha gratidão.

Nos primeiros dias, a minha principal ocupação era providenciar documentos, já que não possuía as Carteiras de Identidade e do Ministério do Trabalho. De posse da documentação, a minha vida era, durante o dia procurar trabalho e, à noite, no Colégio João Pontes, sendo que neste eu ainda precisava recuperar o mês de aulas perdidas.

A busca por um trabalho, eu iniciei nos jornais, diariamente. Logo cedo eu consultava o caderno de Anúncios Populares, anotava aquilo em que a minha ingenuidade acreditava e, como dizíamos no interior, “ganhava a rua”.

Quantas mentiras eu tive que ouvir e quantas promessas que jamais seriam cumpridas. Com dificuldades, depois de algum tempo consegui trabalhar vendendo, de porta em porta, um seguro saúde, que larguei em menos de uma semana, porque eu mesmo não acreditava naquilo que prometiam. Consequentemente, eu já não acreditava nem mesmo no que eu dizia.

Mas, como bradava o dono do velho Circo Mambembe, “o espetáculo não pode parar”. A minha Carteira do Trabalho, de tão nova, atrapalhava-me. Não continha nenhum registro de trabalho. 

De certa forma, a opinião é que eu não tinha experiência ou não sabia fazer nada. Por mais que dissesse que havia trabalhado alguns anos com meu pai, naquele ramo do comércio, quem garantiria que eu não estava mentindo? Mas, pedia emprego em diversos estabelecimentos. 

O comum era levar “não”, mas havia sempre alguém que alimentava sua esperança: Mandava que resolvesse cinco problemas de Juros, Percentual e Regra de Três, e fizesse uma carta pedindo emprego. Eu já estava “bamba” nisso, e a carta eu já sabia de cor e salteada.

Enfim, arranjaram um trabalho para mim: Vender máquina de costura marca Singer. Evidentemente, eu já vendera muitas delas, quando trabalhei na loja de meu pai, mas vender de porta em porta, usando paletó e gravata, era muito mais difícil. 

O sistema da Singer, para esse tipo de trabalho, era da seguinte forma: Pela manhã íamos para a Loja, estabelecida na Rua Barão do Rio Branco, próximo à Loja Romcy. 

De lá, éramos deslocados numa Kombi, sentados no piso do carro forrado com papelões, pois o carro não tinha bancos para os passageiros para funcionar, também, como veículo de carga. Assim, de pasta na mão, com todo material de propaganda, cada um era “liberado” para fazer um roteiro que lhe era indicado pelo chefe. 

Ele lhe determinava uma rua, já cadastrada para ser visitada, por onde você seguia, procurando manter contato com as pessoas das casas e oferecer o produto. Na prática, era complicado, mas na verdade, era interessante o que você ouvia das pessoas. 

Às vezes você encontrava alguém, talvez com alguma carência, que não queria comprar-lhe o objeto, mas insistia para contar-lhe algo e possivelmente contaria toda a história de sua vida.

Em um desses dias, na tentativa de fazer meu trabalho em determinada casa, fui atendido por uma jovem. Muito gentil, ao ouvir o meu preâmbulo, convidou-me para entrar. Ela levou-me até a sala da casa, onde havia uma mesa grande e, em volta dela, seis ou sete jovens que por alguns momentos pararam de estudar para me ouvir. 

Eu achei “a esmola é grande para um cego”, e ficando cada vez mais desconfiado com aquela casa grande e quase sem móveis, as paredes não tinham quadros, e aquelas jovens que, às vezes, baixavam a cabeça para esconder o sorriso no canto da boca. 

Com desenvoltura, perguntavam bastante sobre a máquina, modelos e preços, mas eu sabia que havia algo que não ficava claro, até que não deu mais para disfarçar.

─ Desculpe, as meninas estão de brincadeira com você. Todos nós aqui somos estudantes e moramos aqui no pensionato. Não sabemos nada de costura e não temos interesse por máquina. Desculpe. Você aceita um copo d’água?

Diante de tudo isso, eu apenas sorri, e aceitei a brincadeira. Eu fugira do sol por alguns instantes, serviram-me água gelada e me senti bem durante aqueles momentos com aquela turma jovem de estudantes. Mas, não me demorei muito tempo com aquele trabalho.

No segundo semestre minha situação, com relação ao trabalho, melhorou bastante. Consegui um emprego de balconista na Firma J. Torquato, ganhando NC$ 2,12 (Dois cruzeiros novos e doze centavos) por dia de trabalho, de onde saí dezoito dias após assumir, para empregar-me no Banco da Lavoura de Minas Gerais, onde havia sido aprovado numa seleção.

Eu e o Toinho, durante mais de um ano, moramos no Hotel Arraes, onde nos mantivemos relativamente bem alojados, haja vista que o nosso quarto era o mais alto, com uma varanda voltada para o lado da Faculdade de Direito e de onde observávamos os movimentos estudantis, de greves e protestos, tendo à frente, com frequência, os líderes estudantis Arlindo Soares e Nancy Fernandes, que foi sua sucessora na Presidência do Centro dos Estudantes Secundários do Ceará - CESC, na eleição de 1966.

No meu ponto de vista, o quarto em que morávamos, em termos de localização, era o melhor que havia, inclusive pela ventilação e “varanda panorâmica”. Havia uma janela basculante, ao lado de minha rede, com algumas de suas vidraças quebradas, mas nada que não fosse solucionado com alguns pedaços de papelão, a fim de evitar os respingos de chuva. Eram esses momentos, e outros muitos, que me faziam sentir saudades de minha antiga casa.

Outra visão que tínhamos da “nossa varanda” e que marcara pelo momento político em que vivíamos, era uma pichação, com letras grandes, existente em uma daquelas caixas d’água, especificamente uma de concreto, em que se lia “Lacerda 65”, que permaneceu bem visível durante um longo período. 

Era um sonho dos partidários do Jornalista Carlos Lacerda que permaneceu bem visível durante um longo período e não mais houve tempo para concretizar-se.

Já se foram quarenta anos, desde que aconteceram os fatos aqui narrados e que ainda continuam interferindo em minha vida. Não são, apenas, simples lembranças, são tijolos de uma construção, feita para durar e deixar que, a ela, outras se sobreponham.

O passado é para sempre.

Texto extraído do livro "Memórias de um Saudosista"