sábado, 12 de outubro de 2024

A BOTIJA DE OURO

Por Avelar Santos* 

Em meados do século passado, na loira desposada pelo sol, havia, em Jacarecanga, uma mulher na idade da loba, sem formosura alguma, mas com uma bolsa bem recheada de ouro, que era cobiçada por marmanjos que sonhavam, dia e noite, com o sucesso na vida.

Ela era a viúva de um rico comerciante que partira cedo para as estrelas.

D. Juçara era um amor de criatura: atenciosa, educada, simpática, solícita, sempre disposta a ajudar às pessoas, embasada nos princípios da religiosidade cristã.

Beirando os cinquenta anos, ainda conservava certo viço da longínqua juventude, quiçá pela alimentação frugal diária ou pela disciplina rígida de descanso que sempre devotara ao seu corpo.

Nas imediações de seu palacete, próximo ao Liceu do Ceará, ficava o NEC – Núcleo dos Estudantes Camocinenses.

Um desses abnegados moradores, nada parecido com Robert Redford, mas assustadoramente feio de doer, com cara de bulldog enfezado e orelhas de abano, de codinome Chico Preá, era, mesmo assim, metido a mulherengo e conquistador mequetrefe, dono de um rosário colossal de “foras” da mulherada messalínica, resolveu, certa vez, dar uma cantada na viúva.

Sempre que D. Juçara passava pela Liberato Barroso, pela manhã, dirigindo-se à Praça do Ferreira, com os cabelos cor de azeviche ainda molhados, esbanjando charme e exalando muita sensualidade, dentro de um vestido provocante, que realçava suas formas, causando um verdadeiro pandemônio na rapaziada, deixando-nos loucos de felicidade, o Chico Preá dizia-lhe gracejos, embora nunca correspondidos pela gentil dama.

De tanto ele insistir nestes galanteios, usando de toda sua persuasão de galã de subúrbio, certa feita ela esboçou-lhe um meio sorriso. Aquilo foi a gota de água que faltava para encher, de vez, a bacia das ambições românticas dele.

Assim, em um radioso domingo, o Chico Preá vestiu-se com grande aprumo, tirando do velho guarda-roupa sua melhor indumentária.

Defronte ao espelho oval da sala, feliz, ele escovou os cabelos cortados à moda militar, e, para consumar sua toillete, tomou um banho demorado de colônia Lancaster.

Depois, a pé dois, dirigiu-se à casa de sua pretendida.

Naquele dia, sua feiura estava mascarada um pouco pela alegria incontida do primeiro encontro que teria com a viúva.

Com o coração saltando de contentamento e com a mente a fazer planos para o futuro, eis que ele chega ao seu destino.

Antes que o Chico tocasse a campainha, um senhor de meia idade, que estava sentado colado ao imponente portão da mansão, perguntou-lhe, numa voz grave, o que ele desejava.

Este, por sua vez, disse-lhe polidamente que gostaria de ver a dona da casa.

O velhote deu de ombros, informando-lhe que isto não seria possível pois a mesma encontrava-se em viagem de negócios.

Perguntado quando ela retornaria, o vigia falou-lhe que presumivelmente sua ausência não seria muito longa: “Quem sabe dentro de uma semana ela não estará de volta”, disse ele.

Decepcionado até os ossos, com uma expressão de tristeza infinita igual àquela de cachorro que cai da mudança e perde o dono, o Chico Preá retornou ao NEC.

Remoendo pensamentos pessimistas, vemos nosso intrépido herói, tristonho, caminhando penosamente pelas ruas desertas do Centro.

Ao passar pela Pedro Pereira, para desgraça sua, viu alguns conhecidos companheiros de copo tomando uma cachacinha.

E, não resistindo àquela tentação, parou na birosca.

Após os cumprimentos de praxe, toma o trago inicial de uma dezena de outros que se seguiram.

Embalados pelo som de uma música brega, eles foram ficando, por ali, esperando a madrugada.

Quando o Chico Preá deu-se conta do adiantado da hora, o estrago já estava irremediavelmente feito.

Despedindo-se dos amigos, saiu do recinto.

Cambaleando, sem divisar muito bem a rua, que lhe parecia estranhamente estreita, tomou o rumo da Conselheiro Estelita.

Antes, porém, de dobrar na Liberato, quase na esquina, um safado de um meliante quis conferir os bolsos do Chico, levando não só o parco dinheirinho que encontrara, mas também o relógio Orient que ele comprara, recentemente, restando, ainda, pagar oito módicas prestações.

Depois do susto, quase refeito do porre pela adrenalina a circular no sangue, ele finalmente chega à República.

No outro dia, tudo recomeçaria para ele.

Afinal, o Preá era um bom empacotador do Romcy.

Sob o olhar plácido de Baco, despreocupado do mundo, dormiu a sono solto, acordando, com os seus fortes roncos, os pacatos moradores.

Naquela solitária noite, ingratamente ele não sonhou com a viúva.

*Professor e Escritor Camocinense