A casa possuía um velho sobrado e olhava poeticamente para o mar de forma estrábica. Era acolhedora e espaçosa, e as suas portas, que se abriam para a Rua José de Alencar, pareciam sempre estar gentilmente a nos convidar, a nós, crianças, a desvendar os seus encantos e inimagináveis segredos!
Quantos tesouros estavam ali armazenados ao nosso alcance, dia após dia, naquele local, ávidos para que finalmente os descobríssemos: o tesouro do conhecimento, da amizade, da lealdade, da disciplina, da autoconfiança- e do civismo.
Lembro-me de que, à época, o solar era habitado por quatro velhinhas – irmãs inseparáveis - muito simpáticas: Dona Estela, Dona Ester, Dona Julinha e Dona Mimi. Esta última a minha inesquecível Professora da Cartilha do ABC.
D. Mimi era uma senhora de uma considerável idade, macérrima, elegante, de fala doce, inteligente. E, quando convinha, de uma rigidez e autoridade impressionantes. Como ela era muito vaidosa – predicado de toda boa mulher – utilizava certos truques femininos para disfarçar um pouco a passagem de tantos Natais.
Assim, abusava do rouge e do batom – da cor de carmim – na sua toalete diária que a preparavam magnificamente para o trabalho brilhante de esculpir – com paciência, zelo e dedicação de verdadeiro Mestre - neurônios infantis, plenos de vigor e de magia.
De manhã cedinho ia todo prosa e fagueiro para a Escola, que ficava a menos de dois quarteirões de minha velha casa. Recordo-me de que, pelo caminho, duas coisas sempre me chamavam a atenção: o regurgitar impaciente de um sem número de pessoas maltrapilhas, postadas nas imediações da Empresa Salineira Martinelli, prontas para mais um dia exaustivo de lida incessante, e, também, mais adiante, a imponência arquitetônica austera, de rara beleza, da casa de meu padrinho José Terceiro, localizada quase defronte do Armazém do Sr. Fernando Trévia. Caminhava apressado, ansioso por reencontrar os colegas e, principalmente, para não perder absolutamente nada do início da aula.
Na Escola, em um recinto único, misturavam-se alunos de escolaridades diferentes e – não sei ao certo que mágica a nossa Professora fazia – tudo fluía maravilhosamente bem. Ela, muito solícita, estava invariavelmente a se dirigir a um e outro estudante, na sua própria carteira, tirando-lhe eventuais dúvidas ou, draconianamente, cobrando-lhe o indispensável ponto do dia. Este consistia em uma recapitulação minuciosa que o aluno fazia, de forma oral, a ela própria, da lição dada no dia anterior.
Ao menor deslize nosso, a palmatória – espada de Dâmocles orgulhosamente exibida por D. Mimi – estava, ali, para aclarar a memória dos menos estudiosos e, de quando em vez, para esquentar as mãos de alguns pobres coitados que, talvez por medo, não conseguiam recordar-se das lições vistas na aula pretérita. E, aí, era um festival de ais e de caras feias e, até mesmo, de choro dos menores da turma. Rotineiramente agrupavam-se ao redor de sua mesa alunos da mesma série – e dava-se a abertura da temida e famosa sabatina.
Esta era basicamente a tomada da tabuada – normalmente rápida e cantada – além de um ping pong mental de perguntas e respostas, relacionadas às últimas lições, que os alunos faziam entre si, contando evidentemente com as intermediações necessárias da Mestra, principalmente na hora em que ela oferecia ao aluno que melhor se saíra nesses questionamentos e debates o justo prêmio de ele poder envergar, por alguns segundos que beiravam a eternidade, a famigerada palmatória e dar – radiante de felicidade e com o ego feito balão prestes a explodir – umas boas palmatoradas naqueles que teimavam em nada acertar.
D. Mimi, muito embora raramente usasse deste expediente, quando brandia a palmatória fazia a Escola inteira tremer e momentaneamente tele-transportar-se para o distante Tibete, dada à concentração quase hipnótica de todos nós, onde fazíamos reinar um silêncio tão grande na sala, que somente os monges budistas quiçá fossem capazes de imitar.
E uma vez o aluno fosse o “escolhido” para sua demonstração de disciplina, ela pedia-nos desculpas pelo ocorrido e, consolando o pequerrucho que acabara de receber os seus "afagos", levava-o invariavelmente ao andar superior da casa, onde prontamente colocava álcool ou unguentos no ferimento do mesmo, de acordo com a sua gravidade, pois muitas vezes a palmatória acertava os dedos e até mesmo os nossos braços, visto que para nos livrarmos do “suplício” iminente, puxávamos desajeitadamente as mãos na “hora do bolo”, ocasionando tais lesões.
Depois do devido socorro à vítima, a Professora retornava à sala de aula, na sua habitual compostura, com o estudante lesionado a tiracolo, mordendo um biscoito, sorridente, de bom-humor, como se nada daquilo tivesse realmente acontecido.
E a sabatina, senhores alunos de hoje, não tinha data prevista para acontecer, o que nos motivava a estarmos bem atentos, com a lição de cor, na ponta da língua, como se dizia popularmente, a fim de fugirmos da dor e do vexame de tão humilhante gesto: apanhar publicamente.
Os pedagogos modernos – no alto de sua sapiência de mil teorias – certamente dirão quanto a isto: - Que vergonha! Aquilo era a barbárie!
Os nossos pais, na sabedoria inquestionável da experiência dos anos acumulada, nos diziam: - Filho (a), que isto lhe sirva de ensinamento. Não se deixe abater! Estude mais!
Eu, entretanto, ouso afirmar-lhes: Obrigado, D. Mimi. Valeu a pena!
*Professor e Escritor Camocinense