Quando o conheci, anos atrás, ele era um esforçado lavador de carros do baixo clero da cidade, doido por política provinciana, metido a fat boy, que, nos finais de semana, sabe-se lá por que cargas d'água, virava um comerciante de galináceos de todas os tipos e cores.
Na verdade, vendia de tudo: do peru, ainda sem penas, coitadinho, passando pelos capotes, à galinha caipira,
boa para virar ótima canja, segundo os seus sábios conselhos gastronômicos, servindo tanto para suprir a saudável dieta proteica das gestantes, quanto daquelas senhoras “de resguardo”.
Por ter um topete sinistro, misto de sioux e black feet, aliado ao mercadejamento das aves, muitos passaram a chamá-lo, sem cerimônia, de forma mais intimista, de Zé Galo, coisa que, ao que parecia, não o aborrecia nem um pouco, porquanto atendia à distinta clientela sempre com um sorriso aberto no rosto de mastim.
Certa feita, acuado pelo desmantelo notório do meu fusquinha, caí na palermice suprema de pedir-lhe para dar-lhe um polimento, que já estava andando soturno, a contragosto, reclamando, num tom muito desafiador, por qualquer dá cá aquela palha, cuja carcaça, um dia de cor branca, ficara cinza de tanta poeira acumulada e do desgaste do Mr. Time.
Com seu jeito conversador, ao fim do serviço, pediu-me uma quantia estratosférica, menos pelo trabalho que tivera e mais pelo veículo que, pobrezinho, nada valia.
Assustado com o alto valor cobrado, ponderei, com ele, que aquela seria a primeira, e, certamente, a última vez, que precisaria de sua arte.
Regateei, fui lá, vim cá, até que ele, mui acossado pela bravura indômita de minha boa argumentação, reduziu pela metade o preço inicial.
Assim, fazendo cara de poucos amigos, acabei aceitando a sua “oferta”.
Paguei-lhe, desejando-lhe, baixinho, que fosse lavar carros, doravante, no Guriú.
Com seus olhos de gato morto, que inspiravam logo uma imediata compaixão, olhou-me inquiridoramente.
Talvez para não perder o freguês, que pensava ter, e, que, na verdade, já havia perdido, nada falou, nada reclamou, nada aduziu para si, ficando mudo.
Ao sair, ainda com a flanela amarela molhada, na mão, cumprimentou-me como se eu fora um verdadeiro Lord, dizendo-me, assim, à meia voz, que cuidasse melhor do “branquinho”, dando-lhe, aqui e ali, um bom “trato”.
Aquilo foi a gota de rum que faltava para encher o barril da minha paciência!
Depois que ficara sabendo, segundo as más línguas, que ele arranjara, na Olinda, uma coroa sem atrativos, um tanto quadrada, vá lá, mas cheia da grana, que cismara idiotamente em gostar dele, coitadinha, não demorou nada e o Zé Galo trocou sua encardida bike azul, por uma moto Suzuki, novinha em folha, não mais precisando suar tanto para atender os seus fregueses, principalmente aqueles que residiam na periferia.
O romance dos angelicais pombinhos durou um ano.
Certa feita, o Zé quis trocar sua Suzuki por um Fiat. Até aí, tudo bem. Acontece que, para variar, não tinha um tostão furado e resolveu apelar, novamente, para a bondade da Rita, que não era a Hayworth, mas sim a sua velha companheira.
Esta ficou uma arara brava quando ele ousou dizer-lhe isto, revirando, com gestos teatrais, os bolsos vazios da calça para ela própria constatar a veracidade daquilo que ele dizia.
Arrependida de dar-lhe tudo, sem ter do seu amado uma contrapartida que, realmente, a fizesse sentir-se uma mulher feliz, ela decidiu sair à francesa.
Fuzilando o Zé Galo com o olhar, a pobre mulher deu um sonoro não àquela vil proposta, e, ruminando mil pensamentos achou por bem voltar a Barroquinha, seu torrão natal, onde ele a conhecera, anos atrás.
Na despedida, ia, calada, com um braço na tipoia, fruto de um acidente que quase mata o nosso herói, deixando-o com uma perna e um braço quebrados.
Acontece que depois de tomar todas, o Zé, ao final da festa, no último dia dos festejos, pensando que era o multi campeão de duas rodas Valentino Rossi, mandou que a Rita subisse, na garupa, e, a cem por hora, desafiando a Lei da Física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, resolveu “meter” a moto, justamente numa ladeira, entre dois carros grandes que faziam um "racha".
Deu nisto: hospital, dores atrozes, noites insones, remédios a perder de vista.
E, para piorar de vez, o que já estava ruim, perdera, agora, o seu precioso cofre.
Dizem que o tempo cura todos os males da vida!
Há um quê de encanto pueril nessa bela assertiva!
Assim, aos poucos, o Zé foi se recuperando e, mulher vai, mulher vem, esqueceu completamente da sua antiga consorte.
Ou quase!
Ora, a atual mulherada, com quem ele desfiava suas mágoas e lia sem peias a cartilha do Kama Sutra, nada lhe dava, a não ser o óbvio, por demais.
Money, nem pensar!
Bom garfo, de repente o Zé ficou paquidérmico. É certo que se empanturrava com guloseimas de toda espécie, degustando a qualquer hora, nos mais diversos lugares da urbe, pasteizinhos inocentes, de recheios primorosos de carne de gato, bem temperados (tudo para o abestalhado do cliente fingir que acreditava que o petisco era mesmo de primeira), regado a refrigerantes de marcas nada confiáveis.
Para completar sua descomunal idiotice, almoçava invariavelmente panelada ou buchada, nos quiosques do mercado, lixando-se para os níveis do mau colesterol que estava na estratosfera.
Resultado: ficou pesando 130 kg, pessimamente acomodados em 1,65 m, dificuldades para andar – e, obviamente, para encarar o “batente” diário.
Achou-se perdido!
Só havia uma tábua rasa de salvação!
Se você, caro leitor, pensou na Rita, acertou em cheio.
E, sem mais delongas, o Zé Galo aprumou-se todo para tê-la de volta ao galinheiro, digo, casa.
E lá foi ele esticando asas, cantarolando músicas bregas, num sábado menor, para Barrocas, atrás de um refrigério para suas dores do corpo e do bolso.
Quando a Rita soube de sua chegada, esqueceu tudo que dissera para si mesmo acerca dos homens - e em especial do Zé.
Vestiu-se às pressas e foi ao seu encontro, radiante de tanta felicidade.
Desnecessário dizer que voltou naquele mesmo dia para os braços do gajo, equilibrando-se, para não cair da motocicleta, rezando contritamente aos céus para chegarem vivos no aconchego do lar.
Depois de juras de amor eterno e alguns amassos mais ousados, não deu outra: ao cabo de oito meses, nasceu o Zé Galozinho, prematuro, feio, tal qual o pai, mas com um ar de doçura angelical que pegou emprestado da mãe.
Que o Senhor os abençoe misericordiosamente.
*Professor e Escritor Camocinense