domingo, 10 de novembro de 2024

QUINTAIS

Por Avelar Santos* 

A palavra quintal, sedosa, macia, de sonoridade única, cheia de sons, de trinidos maviosos, mas também, por vezes, particularmente ao escaldante calor do meio dia, plena de profundo silêncio, que nos induz à reflexão, arrebatando a alma, de cheiro doce e suave, de cores belas e brilhantes, de iridescência infinita, que nos cega os olhos com o fulgor de sua luz sublime, é um valioso tapete mágico, daqueles estampados nas estórias fantásticas de Aladim, que nos leva ao passado mais remoto, assim, num piscar de olhos, estabelecendo firmemente a ponte eterna, poética, entre a realidade e o sonho.

Oriunda do latim vulgar quintanale, configura-se como um espaço próprio, adjunto a residências, para a implantação de um pequeno jardim, pomar ou horta.

Trazidos até nós pelos inigualáveis arquitetos portugueses, da época de ouro Colonial, que, na sua essência mais purista, buscavam introduzir nas cidades brasileiras, ainda em processo de efervescência, um refúgio para as pessoas saírem um pouco da solidão dos dias, os quintais logo se tornariam um marco grandioso na concepção estilística das casas de antanho, onde uma profusão de fruteiras acariciadas permanentemente pelo Sol - e embaladas pelo canto febril dos passarinhos - tomava conta de tudo, inclusive de nós mesmos.

Ao fazer uma breve navegação de cabotagem pelo Camocim de antigamente, numa velha canoa, que sabe de cor a verdadeira rota das valiosas especiarias (jamais imaginada sequer pelo descobridor das Índias, Vasco da Gama) que me leva, pobrezinha, nas madrugadas frias e insones, aqui e ali, através do interminável túnel do tempo, a lugares tão conhecidos, fincados como pilastras nas lembranças nostálgicas que não se desgrudam nunca de minhas frágeis sinapses cerebrais, fazendo-me continuamente ruminar fatos pretéritos.

Naqueles tempos idos, recordo-me bem que todas as casas, desde as mais singelas àquelas mais suntuosas, espalhadas simetricamente no plano singular de um tablado de xadrez da urbe, possuíam vastos quintais, onde a Natureza, graciosa, dia após dia, se desdobrava em se manifestar em todo seu esplendor, vestindo majestosamente saias verdes, bordadas artisticamente com seus diversos matizes, que escondiam sabores exóticos - e indizíveis aromas.

Ao lado de nossa morada havia a residência do Sr. Enoque Passos, um velhote rabugento, de andar miúdo, de olhar furtivo, parecendo sempre querer vasculhar inoportunamente o interior das pessoas à sua volta, cuja indumentária preferida era o paletó do mais puro linho branco, talvez na pretensão que isto pudesse realçar ainda mais a sua peculiar linhagem aristocrática. 

Destacava-se no seu quintal enorme, bem cuidado, um enorme pé de cajarana, cujos galhos, generosos, pendiam, por cima do muro, para o nosso lado, não exigindo, portanto, esforço algum, de nossa parte, para nos deliciarmos com essa fruta típica do nordeste brasileiro. 

Mesmo assim, por aventura, ou simples teimosia, eu não sei por que não me contentava simplesmente com esta dádiva dos deuses, e, muitas vezes, na hora de sua merecida sesta, após um almoço frugal, eu me transformava rapidamente em Robinson Crusoé, querendo resolutamente descobrir novas terras, adentrando o seu quintal, catapultado pelo galho amigo, que se fizera irmão nosso, percorrendo, qual plenipotenciário real, todo aquele imenso território.

Certa feita, porém, imaginando eu que ele estivesse entregue aos braços de Morfeu, ou aos agrados pueris de sua mulher, tive a infelicidade de ser surpreendido pelo dito cujo no exato momento em que o galho camarada me jogava espetacularmente no chão, ao melhor estilo de Tarzan.

Sem dizer nada, fuzilando-me silenciosamente com olhos cruéis, ele acercou-se de mim, que, paralisado pelo susto, ficara sem ação alguma, levantando-me doloridamente pelas orelhas, levando-me, ato contínuo, até meu pai, que nem precisou ouvir dele tudo o que se passara.

Naquele fatídico e doído dia, minhas mãos ficaram em carne viva de tanto apanhar.

Aprendida a lição, da maneira mais completa possível, no quintal dele, nem de ninguém, jamais ousei entrar novamente.

*Professor e Escritor Camocinense