Por Avelar Santos*
Duas coisas trago ainda nitidamente gravadas nas retinas cansadas de meus olhos: o quintal amplo, com pedras emergindo do solo, ocupado por uma árvore solitária, que dava sombra numa parte considerável, onde vovô guardava, com zelo, os seus animais de montaria, e de carga, bem como um pequeno jardim, que olhava a cozinha, sem timidez, de frente, no qual havia um pé de bogari que aromatizava o casarão inteiro com o seu perfume.
De manhãzinha, ao raiar da Alva, uma legião de passarinhos aveludava os galhos do bogari, e ali ficava, ensaiando um balé acrobático, incessante, a saudar um novo dia, com si bemóis trinados,que quase lhes consumiam o fôlego.
Nessa hora bendita eu acordava, e, da minha rede, postada na saleta, divisava, pelas frestas da janela que dava para o exótico jardim, a silhueta de minha avó, ofertando, solícita, àqueles intrépidos invasores, água, banana, goiaba, repasto que era consumido, por eles, num piscar de olhos.
Quando o cheiro de café quentinho (e de tapioca de coco) anunciava que a refeição matinal estava pronta, levantava-me, sem pressa, despreocupado do mundo, aspirando a plenos pulmões a delícia do aroma do bogari, que, num tropel de louca cavalgada, ia se esconder nas dobras dos neurônios de um menino, repleto de sonhos e ideais.
À mesa, com seu jeito bonachão, cativante, vovô contava estórias, rodeado por meus irmãos, abraçado à minha amada mãe, cujos olhos faiscavam diamantes de tanto contentamento.
Vovó, por sua vez, nos olhava, complacente, rindo de nossas brincadeiras, atenta ao seu irascível fogão à lenha, sabedora de suas diatribes e peraltices.
O dia transcorria sem a gente se dá conta, e, lá pelas ave-marias, à boca da noite, vovô voltava de sua faina de comboieiro do sertão, e, mesmo cansado, encontrava ânimo para brincar um pouco conosco!
Que maravilha era aquilo!
Os anos galoparam numa velocidade vertiginosa!
Não sei para quê!
Após uma meia eternidade, eu ainda sinto o perfume inconfundível das flores – brancas e pequeninas – do majestoso pé de bogari da vovó, e ainda ouço a voz doce e pausada de meu avô, bem como o riso fácil, infantil, de meus irmãos.
Hoje sou um reles cavaleiro andante, destituído de toda pompa, sem armadura alguma, a enfrentar, com as mãos nuas, moinhos de vento, na vã tentativa de recompor coisas perdidas no labirinto infinito da vida, onde o Minotauro Tempo tudo cruelmente devora.
Não há mais casa, nem tampouco o bogari!
Há muitos invernos, os meus amiguinhos alados bateram asas, pobrezinhos, numa definitiva revoada.
Meus avós, e, uma flor frágil, radiosa, inesquecível, bela, Margarida,minha querida mãe, partiram, que pena, para a última viagem.
Tudo agora é só silêncio!
E os ecos desses tempos da mocidade reverberam nas profundezas da alma.
O que fazer se o passado tragou no seu vórtice voraz tanta felicidade? Nada!
Somente me lembrar do bogari amigo – e da época de folguedos da meninice.
Assim, a saudade é um pijama velho – e bom – que retiro, com cuidado, das gavetas empoeiradas da mente, com o coração a sangrar de saudade, e, com os olhos rasos d’água, eu o visto, nas noites frias, insone, para me aquecer com o inextinguível fogo das doces recordações, que alumia, com a sua fosforescência mágica, a solidão atroz que ora me rodeia, teimando em não querer partir jamais.
*Professor e Escritor Camocinense