Batendo pernas a esmo, pela cidade, num fim de tarde, parando, aqui e ali, para jogar conversa fora com velhos amigos, dando boas risadas, com eles, ao recordarmos fatos antigos , fincados no chão de terra batida da mocidade, que, ingrata, não volta jamais, dei de cara, defronte à Matriz de Bom Jesus dos Navegantes, com o Chico da Doca, pessoa de fino trato, metido a intelectual, que não via há cem anos.
De sorriso farto, no rosto oblongo, e de cabelos mais pretos que a asa da graúna, muito embora carregue, nas costas, mais sacos das areias do tempo que eu, metido numa vistosa camisa xadrez, herança colorida das animadas festas de São João de antigamente, que não combinava com a surrada calça de brim azul que usava, depois de nos cumprimentarmos, num abraço fraterno, naquele seu estilo folgazão, bem falante, perguntou-me se mandara descolorir o meu cabelo para brincar o carnaval, coisa que fingi não ouvir para não ser descortês com ele.
Falando com as mãos, que nunca paravam quietas, ele começou a longa conversa que travamos relatando toda sua história de vida recente, passando, quase incólume, pelo extravio de três grandes casamentos, pontuando como se dera o final de cada um deles, e, por mais que eu quisesse mudar logo de assunto, enfadado que estava com todo aquele corolário de lamentações, que nem mesmo Jeremias chegaria tão perto, eis que, num dado momento, talvez percebendo a aflição que tomava conta de mim, refletida certamente no meu olhar cansado, ele segurou-me pelo braço, receando que caísse de susto, ali mesmo, e, falando à meia voz, como se temesse ser ouvido por outra pessoa, indagou-me se sabia das peripécias que um cientista louco chinês havia aprontado para que a China, enfim, conquistasse o mundo.
Temendo que meu colega de infância houvesse perdido também o juízo, de vez, emudeci, e fiz uma cara de paisagem, para não aborrecê-lo, lembrando-me da máxima que diz que não devemos desagradar aos dementes, e, encarando-o, como se acreditasse em cada palavra que proferia, deixei-o à vontade para falar o que bem quisesse.
Sabendo do meu fraco por História, desde a época em que estudava no Seminário de IPUARANA, em Campina Grande-PB, quando Frei Benjamin me apresentou, certa manhã, ao faraó Ramsés II, ele fez uma brilhante exposição acerca dos desdobramentos da Guerra Fria, das tramóias dessa tal globalização, do descompasso da mídia, da volatilidade das moedas, do esgarçamento do tecido social nesse mundo louco em que muitos afrontam o próprio Deus, e, para o meu assombro definitivo, falou também das conquistas imperiais pretendidas pelos chineses.
Segundo ele, um cientista de nome esquisito, adepto das ideias de Mao, da expansão territorial da grande China, produzira um vírus letal, no seu pequeno laboratório, onde colônias do CORONAVÍRUS flamejavam maldades, tencionando levar a amostra do seu experimento até Pequim, onde faria uma ampla exposição daquela coisa aos dignitários do país.
Contudo, o Chico da Doca falava, agora, baixinho, sussurrando, que eu mal podia escutar o que dizia, narrando que o cientista ao se dirigir à estação para pegar o trem para capital, passando pelo mercado de Wuhan, naquele infernal empurra-empurra das pessoas apressadas, eis que uma delas derruba, inadvertidamente, sua bolsa, quebrando o frasco que continha os medonhos vírus, que, uma vez libertos, atacaram milhares de pessoas, instaurando, assim, uma epidemia que poderia avançar para muitos países do globo.
Ao terminar, engasgado com sua locução tão emocionada, digna de um narrador das tragédias de Eurípedes, o Chico da Doca despediu-se de mim, com os seus olhos enviesados revirando loucuras, nas órbitas, mostrando sua pobre alma atribulada, recomendando-me, vezes sem conta, que tivesse muito cuidado - e que lavasse bem as mãos para não contrair esse mal.
Saí dali preocupado com os destinos da humanidade!
E com o meu próprio!
Mas isso vem acontecer logo agora, meu Paizinho do Céu, quando as nuvens começavam a desanuviar um pouco a borrasca, no horizonte, e os ventos da bonança poderiam soprar, enfim, nesse Novo Ano.
Por fim, temendo aquela madame feia e enfezada da foice e do martelo, rumei ligeiro para casa.
*Professor e Escritor Camocinense