sábado, 25 de janeiro de 2025

A HORA DO POBRE

Por Avelar Santos*

Nos idos tempos de minha meninice, tão longínquos que não os enxergo mais com nitidez nem tampouco ouço os seus doces ecos, havia uma cidadezinha adorável, no fim do mundo, onde a vida, dia após dia, arrastava-se modorrenta, sem pressa, fazendo valer a máxima de que devagar se vai ao longe.

À época, o seu plano urbano, muito embora desprovido de quaisquer floreios arquitetônicos, era aconchegante, cheio de encantos, de cores.

Todos se conheciam pelo nome, e, como não havia larápios, exceto uns pobres coitados que roubavam galinhas para matar a fome dos filhos, era comum dormir-se com as portas abertas.

A vida noturna da urbe era regulada por uma velha Usina, barulhenta e ranzinza, cujos motores, que bebiam diesel incansavelmente sem se fartarem, teimavam em não querer mais trabalhar, invariavelmente por volta das 23 h.

Para o lazer dos nobres conterrâneos de outrora havia algumas praças, três clubes sociais, poucos restaurantes, além de um velho cinema, o Cine João Veras, onde podíamos nos divertir - e sonhar um pouco.

Nessa Shangri Lá brumosa, perdida nos confins do universo, onde o céu parecia chegar mais perto da Terra, através das inesquecíveis fitas de faroeste eu aprendi a admirar as paisagens agrestes do oeste americano, e, John Wayne, lendário cowboy, tornou-se o meu ídolo maior.

Como éramos pobres, não dispunha regularmente de dinheiro para assistir os filmes. E, como se isto não bastasse, eu era também bastante tímido, tendo vergonha, portanto, de carregar (para ganhar a preciosa entrada) as tabuletas, preparadas artisticamente com inigualável esmero, que anunciavam alegremente o filme do dia, postadas estrategicamente em locais de grande circulação de pessoas, as quais eram carregadas orgulhosamente para esses locais por meninos mais venturosos que eu.

Todavia, havia um brevíssimo consolo: o dono do cinema, dez minutos antes de a fita terminar, para evitar o empurra-empurra das pessoas, na saída, mandava escancarar as portas de entrada do mesmo, a fim de facilitar principalmente a retirada das bicicletas, veículo preferencial dos geraldinos.

Assim, ficávamos do lado de fora, aguardando ansiosos, ouvindo distintamente, embora sem nada entender, os célebres diálogos, em inglês, de mocinhos e bandidos, e o zunido dos tiros intermináveis que feriam os nossos ouvidos e explodiam a mil a nossa imaginação, a caridade diária do Sr. Hélio Veras.

Quando as portas finalmente se abriam - era um Deus nos acuda e salve-se quem puder - uma enxurrada de garotos, e de alguns poucos adultos, desprovidos pela sorte momentaneamente de alguns cruzeiros, adentravam em disparada, feito mesmo a Quinta Cavalaria, as dependências do Cine, tomando conta de tudo, disputando o melhor ângulo para ver o final da fita.

Essa bendita hora era pejorativamente chamada de “A HORA DO POBRE”.

Lembro-me que ficava extasiado, nesse breve momento, imaginando-me cavalgar pelas pradarias sem fim ao lado de Roy Rogers, Clint Eastwood, Robert Mitchum, Gregory Peck, dentre tantos outros que meus embaçados neurônios apagaram de minha incipiente memória.

Sentia-me, ali, naquela balbúrdia infernal, como se estivesse sob o sol escaldante do Arizona demandando a Phoenix, levando uma escolta de prisioneiros, ou desbravando corajosamente o território virginal de Wyoming perseguido por um bando de índios.

Recordo-me que ficava de pé próximo à Geral. Esta era uma espécie de gaiola retangular onde se amontoavam aqueles que não faziam parte da aristocrata sociedade de antanho. Por outro lado, as pessoas pertencentes à elite citadina sentavam-se em cadeiras mais confortáveis.

Aqui e ali era observado o estopim aceso de uma discussão mais acalorada, entre indivíduos sem educação, que, de pronto, era esvaziada pela vigilância constante do proprietário.

Mesmo assim, com todo sacrifício, voltava para casa feliz.

Extenuado, logo adormecia. Aí, as imagens voltavam mais fortes, coloridas, em sonhos de longa metragem. Neles, confundia-me com o próprio mocinho: cavalgava livre, tangendo gado; dormia, sob uma abóbada infinita de estrelas, ao lado da fogueira, exposto ao perigo iminente; participava intensamente do clima festivo dos saloons e, quando necessário, era mais rápido, ao sacar, do que qualquer fora da lei.

Hoje, constato, entristecido, que perdi um único duelo: Certa vez, o implacável Pistoleiro Tempo, sempre frio e calculista, foi muito mais rápido do que eu, dando cabo de muitos de meus sonhos.

Com este, infelizmente, não tive nenhuma chance!

*Professor e Escritor Camocinense