Muito embora morássemos na mesma rua, não sei por que não nos falávamos. Todavia, por favor, não tirem conclusões apressadas a esse respeito. Amigo de meu pai, eu achava aquela sua mudez deveras constrangedora.
Mas, na verdade, o que ele poderia falar comigo, um garoto de oito anos de idade, se era um dos comerciantes mais respeitados da cidade?
No íntimo, porém, eu ruminava cabisbaixo sua “indiferença", porque ambos, eu e ele, tínhamos uma paixão comum: uma bela dama, talvez um pouco rechonchuda, vá lá, de silhueta esférica, que fazia – e faz – a festa de brasileiros de todas as latitudes.
Falo da bola, instrumento indispensável desse produto made in England, the football, trazido até nós por Charles Miller, que se tornou, ao longo do tempo, genuinamente tupiniquim, pelo menos no que tange ao aspecto habilidade.
O seu nome era Fernando Trévia, filho dileto do Sr. Geovani Trévia e de D. Amália Fontenele Trévia, carinhosamente chamada por todos de Sinhá. Era o penúltimo filho de uma família de nove irmãos. Herdou da mãe o seu jeito tranquilo e metódico de ser e, do pai, a argúcia e o trato de fazer negócios.
Casado com D. Dulce Maria Aguiar Trévia, tiveram uma prole de onze filhos.
Desportista de primeira hora, naquela época o Estádio Municipal já levava informalmente o seu nome, talvez pelo fato de ele ser um torcedor irrepreensível da Seleção do Município - e um benemérito de quatro costados, como se diz.
De aspecto arredio, à primeira vista, era benquisto por Camocim inteira, sempre com um um dedo de prosa pronto para ser desfiado com os conhecidos. E se o assunto em pauta fosse futebol – e se o sujeito fosse flamenguista como ele próprio o era – aí não tinha para ninguém. Era coisa para mais de meia eternidade.
Reunia-se, invariavelmente, por volta das sete da noite, com os amigos, na calçada do Armazém do Sr. Eduardo Normandia, a fim de ouvir as notícias, ainda quentinhas, refestelado numa cadeira estilo Luís XV, através de um potente rádio Philco, de válvulas, meio gasto pelo uso excessivo, cuja invenção singular devemos à genialidade de Marconi, pela Voz do Brasil, o noticiário mais completo que havia. Depois, escutavam a resenha esportiva da Rádio Sociedade da Bahia, o que propiciava, posteriormente, amenas discussões futebolísticas.
Lembro-me de que o seu Empório ficava a poucos passos de sua residência, na eternamente amada Rua Engenheiro Privat, próximo da Avenida Beira-Mar, de onde se divisava uma vista maravilhosa da Ilha da Testa Branca, da majestosa Estação Ferroviária e do movimentado Cais do Porto, onde, por sorte, ainda atracavam os lendários navios: Rio Piancó, Areia Branca, Aratanha, dentre tantos outros cujos nomes ficaram diluídos no rio caudaloso da memória.
Era no Armazém do Sr. Fernando Trévia que boa parte dos moradores da urbe de antanho podia dar vazão ao sonho de consumo dos habitantes do interior de outrora: do rádio Rca Victor, de ondas curtas, de válvulas, último modelo, passando pelos grandiosos – e não menos desejados – televisores Colorado RQ, preto e branco, até artigos de primeira necessidade, do quotidiano mesmo, como os inseparáveis arroz e feijão, farinha branca vinda do Pará, fumo de rolo, utensílios domésticos, ferramentas, linhas, gaiolas, arame farpado, tudo isso havia no seu estabelecimento comercial, vendendo tanto no atacado como no varejo, com preço invejável que não admitia competidor.
Curioso que em qualquer ocasião, seja no trabalho, em casa, ou na rua, ele sempre mantinha uma discreta elegância no vestir: trajava linho da cabeça aos pés, imaculado, talvez engomado com carinho e precisão pelas mãos hábeis de D. Pretinha – famosa lavadeira de antigamente.
Os anos voaram como uma infalível flecha robinhoodiana, e eis que um belo dia reencontro-o a contar “causos” no Bar de Seu Artur Queirós – onde se reunia, até há alguns anos atrás, a fina flor da burguesia, da intelectualidade e da boemia citadina, antes da madame enfezada da foice e do martelo começar a chamar para o outro lado um por um.
De forma pausada, gesticulando muito, relíquia genética de seus antepassados, os italianos, lá estava ele, naquele seu vozeirão característico de sotaque tipicamente nordestino, a presentear a plateia com estórias de gente que fizera a sua inscrição definitiva nos anais históricos local. Recheava tudo isso, talvez para apimentar um pouco mais a conversa, com coisas pitorescas por que passara no curto período em que estivera no Rio de Janeiro, nos idos de 1930.
Recordo-me que, naquela ocasião, eu tive o prazer de ouvi-lo naquela roda de adultos, da qual, agora, eu fazia parte, embora sem ser burguês, nem intelectual e, tampouco, sem apresentar nenhum carisma.
Meu caro desportista, não sei se no céu vocês perdem tempo assistindo futebol, porquanto certamente há coisas bem mais interessantes a fazer, por aí, mas acredito que o senhor gostaria muito de ver o atual estágio do futebol brasileiro, onde o glorioso Clube de Regatas Flamengo, recheado de craques, jogando muito, ganhou, com brilhantismo, após 38 anos, nesse fim de semana, a Copa Libertadores da América, pela segunda vez, batendo o grande River Plate, de virada, num jogo memorável, desaconselhado para quem tivesse arritmia e outras coisas tais sem funcionar direito no coração, devendo, por cautela, ir consultar-se previamente com o Dr. Newton Timbó, emérito cardiologista, dileto amigo, que tivemos, eu e ele, o privilégio de estudar em IPUARANA, Seminário Franciscano em Lagoa Seca-Pb, sorvendo o néctar precioso do conhecimento, alimentando o espírito com o pão da vida, calçando as sandálias da humildade, da temperança, do bem, forjando, nos seus claustros sagrados, imorredouras amizades.
E, para completar a festa, que parou todo o Rio de Janeiro, e muitas cidades, país afora, inclusive a nossa, no day after a essa bela conquista, o Fla ganhou também, sem precisar sequer entrar em campo, imagine, o título do Brasileirão 2019, por ter largado na frente, desde o início, sem dar trégua a seus competidores, colocando um tantão assim de pontos à frente dos outros times. Um feito digno dos Doze Trabalhos de Hércules. Também pudera! Trouxeram um tal de Mr. Jorge Jesus lá das bandas de Portuga. Convenhamos! Assim é covardia. O nome por si só diz tudo, da razão do sucesso, do milagre.
Bom, embora sem graça, devo dizer que o meu Fluminense nem de longe lembra a Máquina Tricolor comandada por Rivelino, que tantas glórias proporcionou ao torcedor pó de arroz. Que saudades! Não precisa fazer troça, mas, se bobear, ele cai de novo para a Segundona. Uma lástima!
Oxalá, meu prezado, o esporte bretão continue a nos brindar com espetáculos grandiosos, e que possamos, enfim, ter mais alegrias. E que o seu Flamengo continue jogando para encher os olhos daqueles que amam o futebol arte.
É isso! Para finalizar, gostaria de dizer-lhe que disputamos, um dia desses, com o poderoso SUMOV, a final do primeiro turno do Campeonato Cearense de Futsal, num belo Ginásio Poliesportivo, todo coberto, com boas acomodações para o público, que tenho absoluta convicção o senhor gostaria de ter visto. Não, por favor, não ria. É a pura verdade! Torci muito.
Mas, parece que de nada adiantou. Talvez porque tenha pé frio – era a minha estreia como torcedor geraldino – perdemos feio, de goleada. O time parecia morto na quadra, fruto do destempero alimentar, segundo soube, de alguns atletas antes da partida.
Dizem que o goleiro comeu sarrabulho, com muito pirão e, na hora h, cadê ter ânimo para catar as benditas bolas? Que nada! Gulosamente elas entravam uma a uma na sua indigesta meta.
Uma pena! O que fazer? Resta-nos o consolo de termos sidos batidos por uma equipe acostumada a ganhar e colecionar títulos aqui e alhures.
No mais, somente a lembrança de um passado que teima impiedosamente em não querer partir, lancinando irremediavelmente os meus pobres dias.
*Professor e Escritor Camocinense