(Escritor Camocinense)
O dia já havia clareado quando o trem chegou à estação ferroviária de Caucaia, alguns minutos após sua partida da estação João Felipe, em Fortaleza. A composição estacionou de tal forma que o vagão de carga se distanciara um pouco do local de recebimento dos volumes a serem embarcados.
O maquinista tenta corrigir e provoca abruptos solavancos, causando murmúrios entre os passageiros e reclamações por parte daqueles mais incomodados. Dona Terezinha, que viajava em companhia do único filho, pragueja alguma coisa que inspira incompreensão por parte de quem desconhece o drama de seu luto-fechado pela perda recente do marido em acidente de caminhão.
O padre, que viaja mais ao fundo do vagão, utiliza o recurso que o trem oferece e transfere o encosto do banco para o lado oposto, ficando, agora, posicionado de frente para as duas freiras, ocupantes do banco vizinho.
Lembro-me bem de sua fisionomia, relativamente jovem, e seu modo cortês de conversar, principalmente quando, dois dias após essa viagem, entregava-me o isqueiro Ronson, gravado com meu prenome, que eu perdera no trem. Hóspede do Padre Luiz, da Paróquia de São Pedro, ele divulgara ter encontrado um isqueiro, motivo pelo qual fui levado a fazer-lhe uma visita. Sugeriu-me, educadamente, que dissesse o que havia gravado no referido objeto, para fazê-lo voltar às minhas mãos.
- Tem gravados meu nome e a data 10 de janeiro de 1962, afirmei de forma convincente. Ele examinou o isqueiro, sorriu e acionou a carretilha, produzindo a chama, e apagou-a rapidamente. Manteve-se, pensativo, por um instante. Imagino que lhe veio à mente um conselho ou algo relacionado com o hábito de fumar. Talvez tenha considerado inoportuno aquele momento e silenciou. Finalmente, estendeu a mão, aberta, expondo o isqueiro num gesto de entrega.
Depois de Caucaia, as estações foram-se sucedendo, cada uma com suas peculiaridades. Os meninos do Tururu, com as quartinhas cheias, vendiam água servida em um único copo de alumínio, invariavelmente marcado pelas quedas. Os peixes fritos, vermelhos de corantes de urucu, eram fartamente encontrados em Miraíma, mas a tapioca com coco, de tão presente que se fazia, em todas as paragens, parecia ter sido disseminada junta aos trilhos de ferro.
O velho trem, quando deixava Itapipoca e tomava o rumo de Miraíma, sem que percebêssemos, afastava-se ainda mais do litoral, para ir em busca da sempre vaidosa cidade de Sobral. E lá chegamos, por volta do meio-dia, para nos integrarmos à composição que seguiria para Camocim.
A espera foi breve, pois, em menos de meia hora, dávamos prosseguimento à nossa viagem, naquele início da tarde de 22 de dezembro de 1963.
Ainda não vivíamos um clima de inverno, mas algumas chuvas haviam banhado a zona norte do Ceará, haja vista que podíamos observar os espelhos d’água nos pequenos barreiros, que ladeavam a ferrovia. E o prenúncio da muitas chuvas foi, posteriormente, confirmado com a sempre lembrada quadra invernosa do ano de 1964.
Nuvens escuras passeavam no céu, durante aquela tarde, quando o maquinista Sebastião Ferreira de Brito, conhecido em Camocim pelo apelido de Barriga, fez soar o estridente apito da máquina, ao aproximar-se da ponte metálica de Granja. A chuva não veio, porém a ausência do sol aumentou a monotonia da tarde.
O Montgomery, meu amigo e companheiro de viagem, lança mão de sua bagagem e se despede de mim, vez que o seu objetivo era passar as festas natalinas com alguns parentes, ali, na cidade de Granja. E, assim, iniciei a última etapa daquela viagem, que deveria terminar dentro de 40 minutos, na então quase centenária estação ferroviária de Camocim.
Pelo telégrafo, a partida do trem foi comunicada ao agente da estação de Camocim, que, no mesmo instante, como era de praxe, anunciou para a população, que o trem deixara a cidade vizinha. Isso era feito com a utilização do sino, badalando, lentamente, no início e, logo depois, encurtando o espaço de tempo entre as batidas, até o mínimo possível e, em seguida, silenciava.
Naquele dia, quando o tempo de espera para a chegada do “horário” - como alguns denominavam o trem de passageiros - ultrapassou os cinqüenta ou sessenta minutos, a inquietação tomou conta dos que se dirigiram ao terminal, para receber alguém, ou ali se encontravam por simples diversão. A falta de informações era torturante, contudo, de imediato não havia o que fazer, a não ser, esperar, pois a única parada existente, entre Granja e Camocim, era a do Distrito Dr. Privat, que se restringia a uma pequena estação sem telégrafo.
Logo que o trem partira de Granja, acomodara-me no encosto de braço de um dos bancos, a fim de ficar mais próximo de alguns amigos naquele final de viagem. O resto de tarde ainda insistia em se fazer presente e o Sr. José dos Santos, como chefe-de-trem, ou condutor, como alguns preferiam titular aquela função, ainda não passara, recolhendo as pequenas passagens de papelão rígido, que ele picotava, produzindo um barulho característico e por demais conhecido pelos usuários dos trens.
Pensativo, eu acompanhava o balanço do vagão e a variedade de sons nos trilhos, com suas mudanças de tom, quando as rodas rolavam, pesadamente, sobre os bueiros ou pontilhões. Em dado momento - e foi um curto momento – percebi que o vagão passava, como que sobre obstáculos, que corria trepidante e sua inclinação para a direita apresentava-se muito diferente daquele balanço, que eu me acostumara a acompanhar... E, senti, que ele não mais retornaria para a sua posição normal. Vi que alguém, também, já percebera e expressara seu desespero.
- Meu Deus, o trem está virando!
Essa foi a única voz que ouvi. E foi uma voz feminina, que recorrera ao Pai naquele momento de aflição. Ouvi muitos gritos, barulhos indecifráveis, um mundo de malas e pacotes pelos ares e, finalmente, tudo parou. Engana-se quem imagina que, depois desses momentos, reinou profundo silêncio, pois não houve trégua. Gritos e gemidos sucederam-se e juntei-me aos que estavam ilesos, para socorrer uma multidão de feridos e amparar os que se entregaram ao desespero, mesmo sem ferimento algum. As portas estavam emperradas e todos os passageiros foram retirados por cima, através das janelas, num trabalho penoso, tendo em vista tratar-se de pessoas feridas, crianças, idosos e mulheres em pânico. Toda a composição tombara para a direita, exceto a locomotiva e um vagão de transporte de bois, que vinha logo depois, atrelado à mesma.
O último carro do comboio desatrelara-se do carro seguinte, no qual eu viajava, e despencara de aterro abaixo, indo parar, seriamente avariado, no ermo do terreno marginal da ferrovia.
Fui o último a deixar o vagão e, ao fazê-lo, recebi de um policial militar, conhecido por Coqueiro, o pedido para que o auxiliasse na retirada do corpo do Sr. Gerardo, uma das vítimas, que se encontrava no carro dos Correios. Em seguida, tomei conhecimento de que a fatalidade alcançara, também, o Sr. Valdemar.
Restava pouca luz do dia. A noite aproximava-se, lentamente, como se adiasse o momento de ocupar o espaço daquela tarde indesejável. Os primeiros socorros foram chegando e as pessoas foram sendo retiradas do local do sinistro. Nesse momento, meus pensamentos voltaram-se para minha casa, para a angústia que poderia estar pairando entre os meus, gerada pela carência ou ausência de informações. Tomei minha mala e, com dois amigos, caminhamos até a estrada carroçável que ligava Granja a Camocim, onde conseguimos uma carona, em um jipe preto, pertencente à Campanha de Erradicação da Malária.
Na manhã do dia seguinte, depois de uma noite de sono, entrecortado por sobressaltos e pesadelos, dirigi-me ao Serviço de Alto-Falantes Sonoros Pinto Martins - onde, à noite, eu fazia o trabalho de locução - para anunciar a morte e o sepultamento das vítimas do acidente ferroviário. Ao retornar para casa, após esse trabalho, senti-me profundamente comovido ao surpreender minha mãe tomada por um choro silencioso, tendo em suas mãos minha camisa verde, com a qual eu chegara de viagem, com manchas de um sangue que a mim não pertencia. Compreendi que sua emoção provinha de sua gratidão a Deus, como mãe, por nenhum mal me ter acontecido.
Transcorridos mais de quarenta anos após aquela ocorrência, restaram os espaços vazios para aqueles que perderam algum ente querido. Para os demais, que se envolveram, de alguma outra forma, naquele episódio, as marcas relativamente suaves de algumas poucas cicatrizes, quer seja na superficialidade da epiderme, ou, quem sabe, nos mistérios do subconsciente.
Quanto a mim, que contava, à época, apenas dezesseis anos de idade, fui poupado, pela infinita misericórdia de Deus, e agraciado com oportunidades de extrair lições dos fatos, que me fizeram refletir.
Mesmo sendo, ainda, tão jovem, não me intimidei diante do desafio de retirar de um vagão, quase às escuras, o corpo inerte de um homem, morto de forma trágica, quando tabus e crenças nos aterrorizavam ante a, supostamente terrível face da morte. Do episódio vivido, ensinamentos me foram oferecidos e lembranças indeléveis me acompanharam por outras estradas, em momentos diferentes.
Foi esse o último acidente ferroviário, ocorrido no ramal Sobral-Camocim, embora suas atividades tenham perdurado, ainda, por mais treze anos e oito meses. Sobre a sua efetiva e lamentável desativação, prevalece, como referencial melancólico, a partida do derradeiro trem de Camocim, numa quarta-feira, antes do nascer do sol, precisamente no dia 24 de agosto de 1977.
Texto extraído do livro "Uma Janela para o Passado"