Meu nome é Van der Meer. Ao longo de minha existência, pela misericórdia de Deus, desfrutei da quietude inconfundível de cem outonos, mesmo percebendo a luminosidade desses dias mágicos cada vez mais tênues – até as retinas, cansadas, escurecerem por completo tudo ao meu redor.
Já vai longe o tempo em que as florestas de carvalho cobriam toda esta região – e os regatos, filhos sem mácula, vindos das montanhas, além, murmuravam, ao entardecer, canções que nos transportavam aos céus, enchendo nossas almas, por breves momentos, da própria sublimidade da essência divina.
Na aldeia de Dreyden, onde morava, todos me conheciam, demostrando, a mim, por isso mesmo, respeito e atenção.
Talvez o fato de ser o faroleiro oficial do lugar me concedesse este status imerecido. Afinal, pensavam, quem poderia indicar o caminho de volta aos nossos maridos, irmãos e filhos, senão o velho farol? Certamente eu ajudava um pouco nisso.
Vou contar-lhes o que nos sucedeu após um terrível tufão varrer toda costa setentrional dos Países Baixos, levantando muralhas de água que arrasavam tudo à sua volta.
Naquela noite fatídica algo prenunciava o fim do mundo iminente. As estrelas corriam loucas, no firmamento, e uma aragem fria penetrava fundo cada parte do corpo. Antes de sair de casa, depois de uma ceia frugal, beijei minha mulher e minhas duas filhinhas, sem saber, meu Deus, que aquela era a última vez que veria seus rostos tão amados, antes de submergirem no caos infinito.
Despediram-se de mim, como faziam sempre, com um sorriso nos lábios, desejando-me uma boa noite de trabalho – e um feliz retorno ao lar.
Segui vagarosamente, ruminando mil pensamentos, pelos molhes, até a escarpa que escondia o caminho íngreme que levava ao farol. Havia óleo de baleia estocado em enormes barris, no porão, que garantia, aos marinheiros, a certeza da volta para casa, por muitas luas ainda. Mas, infelizmente, não foi o que aconteceu.
Uma vez aceso, o piscar do farol parecia acalmar os corações dos habitantes da aldeiazinha, que rezavam, contritos, em cada residência, ao Paizinho Celeste, pelo regresso de seus entes queridos, sãos e salvos – e com fartura de peixe.
Oh! Como é triste, para mim, recordar tudo, bom Deus. No raiar primeiro da madrugada, a força do vento já era notada quando os vagalhões, cada vez maiores, mais enfurecidos, batiam como Titãs nos rochedos próximos.
Depois, o cataclismo final: a tormenta destruindo tudo, enquanto o mar invadia cada centímetro de nosso pequeno mundo. Quando o dia amanheceu, tudo serenou. Menos meu coração. Desci, aflito, os degraus da velha torre de vigia e o que vi me deu a exata dimensão do horror: escombros e mais escombros e corpos espalhados por toda parte. Ali mesmo desabei – e chorei amargamente
Das mil almas do povoado, escaparam menos de cinco centenas. Minha família inteira sucumbiu. Tocar a vida novamente foi doloroso; todavia, necessário.
Hoje, a aldeia renasceu das cinzas, e da dor, apresentando novos ares. Mas, que isto importa mais para mim, se nada mais tenho?
A vida deixou-me velho antes da hora, cego, mas não dilapidou por completo minhas bruxuleantes esperanças. Um triste fim certamente para quem tanto se doou. Contudo, longe de eu contestar minimamente os desígnios insondáveis do Altíssimo, pois sei da fugacidade das coisas terrenas - e que muito em breve estarei novamente reunido aos meus amores, no Paraíso.
E aí, cada lágrima secará, a dor será uma lembrança remota e plenamente cessará - e o riso fará morada eterna em nossos corações.
*Professor e Escritor Camocinense