sábado, 22 de março de 2025

A BOTIJA DE OURO

Por Avelar Santos*

Na década de 70 do século passado, na loira desposada pelo sol da primeira e desastrada administração municipal petista da capital alencarina, havia em Jacarecanga uma mulher de meia idade, sem muita formosura, mas com uma bolsa bem recheada de dinheiro, que era o foco de atenção de muito marmanjo que sonhava ser alguém na vida, sem fazer, digamos, demasiado esforço.

Ela era a viúva de um abastado comerciante local que falecera precocemente vitimado pelo uso abusivo do álcool.

D. Juçara era um amor de criatura: educada, simpática, caridosa, sempre disposta a ajudar qualquer pessoa que lhe procurasse, sem antes, contudo, reconfortá-la espiritualmente, embasada nos sólidos princípios de uma filosofia de vida marcada pela simplicidade e religiosidade. Beirando os cinquenta anos, ainda conservava certo viço da longínqua juventude, quiçá pela alimentação frugal diária ou pela disciplina rígida de descanso que sempre devotara ao seu corpo.

Nas imediações de seu palacete, próximo ao Liceu do Ceará, ficava o NEC – Núcleo de Estudantes Camocinenses. 

Um desses abnegados moradores, nada parecido com Robert Redford, mas assustadoramente feio de doer, com cara de bulldog enfezado, e orelhas pontudas de abano, de codinome Chico Preá, era, mesmo assim, metido a mulherengo e conquistador mequetrefe, dono de um rosário colossal de “foras” da mulherada messalínica, resolveu, certo dia, dar uma cantada definitiva na viúva.

Sempre que D. Juçara passava pela Liberato Barroso, pela manhã, com destino à Praça do Ferreira, com os cabelos ainda molhados, esbanjando charme e sensualidade, dentro de um vestido justo, que realçava por demais suas generosas formas, causando um verdadeiro pandemônio na rapaziada, deixando-nos literalmente loucos de desejo de conhecê-la mais intimamente, o Chico Preá dizia-lhe gracejos, embora nunca fossem correspondidos pela gentil dama. 

De tanto ele insistir nestes galanteios, usando de toda sua persuasão de galã de subúrbio, certa feita ela esboçou-lhe um meio sorriso. Aquilo foi a gota de água que faltava para encher, de vez, a bacia das ambições românticas - e financeiras - de nosso herói.

Assim, em um radioso domingo de Outubro, o Chico Preá vestiu-se com aprumo, tirando do velho guarda-roupa sua melhor indumentária. Defronte ao espelho oval da sala, escovou vigorosamente os cabelos cortados rentes, à moda militar. 

Para consumar sua toillete, tomou um banho demorado de colônia Lancaster, e, enfim, cadenciando o passo, dirigiu-se a casa de sua eterna e providencial pretendida.

De longe, ele estava irreconhecível. Naquele dia, sua feiura estava mascarada um pouco pela alegria incontida do primeiro encontro que teria com a viúva. Com o coração saltando de felicidade pela boca - e com a mente a fazer planos para o futuro – eis que ele chega ao seu destino. 

Antes que o Chico tocasse a campainha, um senhor de meia idade, que estava sentado colado ao imponente portão da residência, perguntou-lhe civilizadamente o que ele desejava. Este, por sua vez, disse-lhe polidamente que gostaria de ver a dona da casa. 

O velhote deu de ombros, informando-lhe que isto não seria possível pois a mesma encontrava-se em viagem de negócios. Perguntado quando ela retornaria, o vigia falou-lhe que presumivelmente sua ausência não seria muito longa. “Quem sabe dentro de uma semana ela não está de volta”, dissera ele. 

Decepcionado até os ossos, o Chico Preá sensatamente retornou ao NEC. Remoendo pensamentos pessimistas, vemos nosso intrépido conterrâneo caminhando penosamente pelas ruas desertas do Centro. 

Ao passar pela Pedro Pereira, para desgraça sua, viu alguns conhecidos companheiros de copo tomando uma cachacinha. 

E, não resistindo àquela sedenta tentação, ingenuamente parou na birosca. Após os cumprimentos de praxe, pede o trago inicial de uma dezena de outros que se seguiram. Embalados pelo som da música brega de Reginaldo Rossi, eles foram ficando por ali. E tome Ypioca!

Quando o Chico Preá deu-se conta do adiantado da hora, o estrago já estava irremediavelmente feito. Despedindo-se pressurosamente dos amigos, saiu do recinto. Cambaleando, sem divisar muito bem a rua, que agora lhe parecia estranhamente estreita, tomou o rumo da Conselheiro Estelita. 

Antes, porém, de dobrar na Liberato, quase na esquina, um meliante quis conferir os bolsos do Chico, levando não só o parco dinheirinho que encontrara, todo amassado, mas também o belo relógio Orient que recentemente ele comprara – e ainda restava pagar oito módicas prestações.

Depois do susto, quase refeito do porre pela adrenalina excessiva a circular no sangue, ele finalmente chega à República.

No outro dia, tudo sofridamente recomeçaria para ele. Afinal, o Chico Preá era empacotador dos bons do Romcy.

Despreocupado do mundo, dormiu a sono solto. Ingratamente, não sonhou com a viúva.

*Professor e Escritor Camocinense