Tumultuado, caótico e com um final trágico podem ser algumas das descrições dos eventos da eleição da mesa diretora da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) em 1985.
São 40 anos do processo, marcado de forma trágica pela morte do então deputado estadual Murilo Aguiar.
A data é lembrada pelo neto de Murilo, que ocupa, hoje, o mesmo mandato que um dia ele ocupou na Assembleia.
Em 2020, Sérgio Aguiar (PDT) subiu na tribuna para fazer um resgate histórico dos eventos que tiraram o avô de seu convívio.
“É difícil relembrar esse momento, justamente num domingo. Mas a história desse grande homem público, de poucas posses e poucas letras, deve ser relembrada.
Sou a terceira geração da família a ocupar uma vaga nesse parlamento e meu avô é motivo de muito orgulho”, ressaltou na época.
O deputado, inclusive, foi testemunha ocular dos fatos que tiveram como desfecho a morte de Murilo. Em meio à confusão, com 14 anos de idade, como contou Sérgio ao O POVO, o atual deputado viu o tumulto do dia 28 de fevereiro de 1985, quando a eleição da mesa aconteceu.
Antes de explicar como tudo transcorreu, é preciso voltar alguns dias na linha do tempo para entender quem era Murilo e como se construiu essa disputa pela presidência do parlamento cearense, ainda mais em um cenário no qual brigas pela vaga são raras — apenas duas nos quase 190 anos.
Quem foi Murilo Aguiar
Murilo era comerciante em Camocim e expandiu a influência até se tornar nome de destaque estadual. Político por vocação, seguiu a orientação tradicional de seu pai, filiando-se à União Democrática Nacional, sob cuja legenda foi eleito deputado estadual constituinte em 1947, em eleição das mais disputadas.
Foi reeleito para as legislaturas de 1959, 1963, também pela UDN, e em 1967, pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), e em 1983, pelo PDS (Partido Democrático Social). Na mesa diretora, ocupou os cargos de 2° secretário em 1950; 3° secretário em 1959 e 1963; e 4° secretário em 1964
Na disputa da Assembleia naquele ano, ele foi o candidato do governador Gonzaga Mota. Mas só virou candidato no dia da eleição.
No começo de fevereiro daquele ano, como mostram as páginas do O POVO, reunidas em pesquisa histórica de Roberto Araújo. O escolhido inicialmente era o deputado Antonio Câmara (PDS).
O candidato de oposição era Castelo de Castro (PMDB) que, segundo interlocutores, tinha apoio da própria bancada, no total de 12 de parlamentares, além de seis deputados ligados ao senador Virgílio Távora, dois “mauristas”, o do então deputado Ciro Gomes e três “dissidentes”.
O inusitado é que os grupos contavam com os votos dos “adautistas”, o grupo do ex-governador Adauto Bezerra, na soma de 12. Os apoiadores contabilizavam ainda 11 votos ligados ao governador e alguns “dissidentes”.
Alguns dias depois, a eleição ainda era dada como acirrada. Em texto publicado no O POVO, assinado por Inês Prata, há até uma comparação com um samba de Moreira da Silva: "Nós trocamos tantos tiros que até hoje ninguém sabe quem morreu. Eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu".
Disputa acirrada: cada um dizia que ia ganhar Os dois lados tinham, ou diziam ter, certeza de que iriam ganhar. A conta dos deputados era bem apertada, com os indecisos podendo fazer diferença.
O “clima”, inclusive, apontava que os parlamentares que não tinham anunciado publicamente em quem iriam votar já tinham se decidido, mas mantinham as intenções em segredo, ou para não “desagradar” ou porque não haviam sido instruídos por seus chefes políticos.
“O que há é uma disputa equilibrada, onde os dois lados estão fazendo tudo para conseguir votos dos que não estão satisfeitos com as decisões tomadas por seus companheiros ou chefes de tendência”, diz trecho da matéria do O POVO datada do dia 10 de fevereiro de 1985.
Câmara ainda era confirmado na disputa. O grupo ligado ao então vice-governador Adauto Bezerra até promoveu reunião para tomar posição. O deputado Domingos Fontes comentava, na época, que o “problema” não era Câmara, mas "com a maneira de conduzir a disputa".
Isso explicaria o porque de o grupo do vice-governador — Adauto — não apoiar de cara o candidato do governador. Um terceiro candidato era cogitado, contanto que fosse alguém de consenso.
Até então, a eleição não tinha data para ocorrer e acabou sendo marcada para o último dia possível, 28 de fevereiro. Era tanta articulação que eles queriam deixar para as vésperas a divulgação de quem ia compor as chapas para os demais cargos.
Cada posição da mesa diretora era votada individualmente, ou seja, para cada cargo havia uma eleição. A mudança ocorreu com a vigência da Resolução n.º 398, de 11 de dezembro de 1996, quando a disputa passa a ser em conjunto. Mesmo assim, em 1985, os concorrentes já eram apresentados em chapas, embora a eleição em bloco não fosse obrigatória, diferentemente do que ocorre hoje.
A eleição da Assembleia acontecia em momento sensível na política O momento em que a eleição era realizada era delicado não só para a Assembleia Legislativa do Ceará, mas para o Brasil. Estava para nascer a Nova República, que teve início justamente em 1985, quando o vice-presidente eleito José Sarney assumiu a presidência do Brasil, após a morte do cabeça de chapa, Tancredo Neves.
O Brasil estava nos últimos dias da ditadura militar instaurada havia quase 21 anos. Foi na manhã de 15 de março de 1985 que o Congresso Nacional deu posse a Sarney — Tancredo morreu em 21 de abril, mas a saúde já o impossibilitou de tomar posse.
O declínio da ditadura começou a tomar folego em meados de 1983 quando começou a campanha das Diretas Já. As mobilizações pressionavam o Congresso a aprovar a emenda Dante de Oliveira, que previa a eleição direta para presidente.
Naquele ano, Gonzaga Mota participou pela primeira vez de ato público pelas eleições diretas a convite do então governador de São Paulo, Franco Montoro.
Ele foi o primeiro governador a defender Tancredo Neves para presidente. Em meados de 1983, ele rompeu com o regime militar, que era chefiado pelo general João Figueiredo, ao escolher não apoiar ao candidato do PDS, Paulo
Foram realizadas duas votações. Na primeira, o deputado Castelo de Castro obteve 23 votos, enquanto Murilo Aguiar obteve 22 votos. Um voto foi anulado.
Segundo o neto de Murilo, Sérgio Aguiar, o voto seria justamente o do avô. Uma segunda votação precisou acontecer porque era necessária maioria absoluta, que seria metade dos votos mais um.
O resultado final foi de 23 para Castelo contra 21 para Murilo, com dois votos anulados. Deputados aliados de Murilo protestaram e os demais parlamentares foram se aproximando da mesa diretora, onde estavam as cédulas. Começou a confusão e os deputados começaram a trocar insultos. Um dos que foi xingado foi Ciro Gomes.
As páginas do O POVO relatam ainda que o filho de Murilo, Murilo Aguiar Júnior, tomou as cédulas das mãos do presidente da comissão eleitoral, caiu em cima de um deputado, foi empurrado e, com isso, os papeis caíram e foram rasgadas logo depois. Câmara, que não concorreu, era tido como “bastante descontrolado”.
Foi vaiado e chegou a mostrar o dedo para quem estava nas galerias. Ele teria sido um dos que rasgaram as cédulas. No plenário, foi empurra-empurra e troca de agressões. Ciro Gomes saiu do plenário e foi liderar grupo de deputados que foram guardar a sala que mantinha as fitas da gravação da sessão.
Murilo chegou a se exaltar durante a votação, mas concedeu entrevista coletiva quase uma hora depois da confusão. Chegou a dizer que o voto anulado nem era dele, mas assumiu a culpa pelo colega.
Disse também que não era “fácil” o que tinham pedido a ele, de assumir a vaga de Câmara. Então, Murilo se sentiu mal. Chegou ao hospital 23h30min. À 1h40min de 1º de março de 1985, faleceu. Os médicos atestaram "enfarte cardíaco". O governador Gonzaga foi ao hospital e parecia consternado. Ofereceu o Salão Nobre do Palácio da Abolição, além de uma guarda de honra da Polícia Militar.
O corpo de Murilo seguiu em cortejo em direção ao Cemitério Parque da Paz, onde ele foi sepultado. Murilo deixou a esposa, Maria Stela Rocha Aguiar, e sete filhos, entre eles Chico Aguiar, que exerceu cinco mandatos legislativos na Assembleia e foi presidente da Casa em 1993 e 1994.
Quando Ciro Gomes renunciou ao Governo do Estado, no fim de 1994, para se tornar ministro da Fazenda, Chico foi eleito governador, em eleição indireta, e exerceu o cargo por 83 dias.
O neto, Sérgio, também é deputado e tentou ser presidente, mas foi derrotado em 2016 na disputa contra Zezinho Albuquerque, hoje no PP. Foi a primeira vez, e última até hoje, que houve disputa para a presidência desde a trágica votação de 1985.
Fonte: Jornal O Povo