sábado, 15 de março de 2025

NO TEMPO DOS GIBIS

Por Avelar Santos*

A leitura alarga horizontes a perder de vista, e nos conduz a voar no infinito, permitindo-nos degustar os incontáveis sabores e as delícias de cada viagem.

Como uma ilha exótica, cresci rodeado de livros por todos os lados. Desde a mais longínqua infância, por influência direta de meu pai, ávido leitor, vi-me apaixonado por uma infinidade deles, de belas e faiscantes gravuras, cujas histórias não conseguia decifrar, pois a Pedra da Roseta do Alfabeto Lusitano ainda era um intrigante mistério para mim. 

 Contudo, todo abençoado dia eu era arrebatado para o Céu tamanha a felicidade que sentia ao folhear cada página muda dos inúmeros Clássicos, espalhados pela casa inteira, ficando horas a fio nessa maravilhosa e segura aventura.

Quando, finalmente, apropriei-me de vez da fórmula mágica de decifração dos incomparáveis hieróglifos portugueses, cuja sonoridade única nos leva a sonhar, recitava-a sem pressa, de forma contínua, não largando mais um só instante sequer aqueles preciosos amigos, que, pacientes, magnânimos, revelavam-me os seus extraordinários segredos e conhecimentos profundos, diversos, devorando tudo que estivesse ao meu alcance.

No Camocim de outrora, cujas águas rápidas e fugidias dos anos se escoaram definitivamente, turbilhonantes, para o Mar da Saudade, na metade do segundo quarteirão da Senador Jaguaribe, no sentido Norte-Sul, do lado direito, à sombra de um imponente Fícus, havia a Casa das Revistas, ponto de encontro da Juventude da época que gostava de palmilhar o mundo surrealista dos Gibis.

Ali, enfileirados, sem obedecer à organização alguma, e, livres de quaisquer normas, vistosos, chamativos, distribuídos aleatoriamente em grandes prateleiras, estavam heróis espetaculares (Buck Jones, Kit Carson, Cavaleiro Solitário, Roy Rogers, Tarzan, Lanterna Verde) e vilões estereotipados, cujos desenhos nos fascinavam e riscavam a imaginação, com seus quadrinhos característicos por onde mil personagens nos falavam, a nós, pobres e felizes mortais, recém-saídos do encantamento brejeiro da doce meninice. Que maravilha era aquilo, Paizinho Celestial!

Presumo que por ser um cliente fiel, embora jamais com dinheiro sobrando, nos bolsos miúdos, o dono gentilmente me permitia ver praticamente todos os gibis, manuseá-los, com extremo cuidado e carinho, olhar curiosa e demoradamente os seus magníficos desenhos, inebriar-me com o cheiro das páginas novinhas, que recendiam a perfume dos deuses, relancear os olhos pelo enredo de cada um, e, por vezes, arriscar-me mesmo a ler, embevecido, alguns trechos, enquanto ele fingia que estava ocupado com alguma coisa e nada daquilo observava. Assim, uma eternidade se passava até eu escolher minhas duas revistas mensais. Aquele ritual se repetia sempre – e proporcionava-me um prazer indescritível.

Depois, com o coração acelerado, querendo afoitamente sair pela boca, e, com os pés voando, pelas calçadas, com os olhos brilhantes, de puro contentamento, levava cuidadosamente para o aconchego do lar aquele inestimável tesouro. 

Ao chegar à velha e querida casa, colocava cuidadosamente os valiosos presentes sobre a mesa da sala de estar, cujo único aparato que se via era um asmático rádio de válvulas Philco, sentado tranquilamente sobre uma tosca mesinha, que, irascível e rabugento, funcionava quando lhe apetecia, e, com o pensamento dando voltas e mais voltas, dirigia-me rapidamente ao lavatório a fim de livrar as mãos de bactérias e impurezas. 

Após isto, com a respiração ofegante, pegava novamente o embrulho, abrindo-o devagarzinho. Não lia logo de pronto os gibis! Não! 

Durante alguns momentos, ficava olhando o esmero artístico de cada capa da revista, enxergava nitidamente os seus contornos, vasculhava a esmo, todavia com sofreguidão, o seu interior, embrenhando-me perdidamente naquela selva espessa e macia. Somente após minutos angustiantes de propositada espera é que eu começava verdadeiramente a desvendar seus segredos. Ah! Que alegria estonteante!

Cansada e febril, com o cocheiro, frenético, animando os cavalos a correrem mais e mais, a carruagem do tempo traz-me de volta, ileso, ao presente, ainda com a mente povoada de gratas e perdidas recordações.

Sem saber ao certo o porquê, tenho pena da garotada de hoje, que lê pouco ou quase nada, plugada praticamente 24 horas por dia, na Web, na maioria das vezes desfilando bobagens e vaidades, pelas redes sociais, esquecendo-se completamente do mundo real, este que passa veloz como um foguete - e que só nos damos conta disso, infelizmente, ao envelhecermos.

E, claro, por serem modernos, estes garotos atuais nunca saberão do azougue mental que os gibis eram capazes de fazer, e do fascínio gigantesco que eles implementavam, em nós, fortalecendo nossas asas e impulsionando-nos para voos bem mais altos e audaciosos.

*Professor e Escritor Camocinense