Mesmo assim, José sabia que tinha de se levantar logo da rede para ir trabalhar.
Afinal, naquela data memorável, ele chefiaria seu primeiro trem de passageiro, algo que esperara pacientemente durante tantos anos.
Por isso, acordou com um misto de alegria e ansiedade. Olhando mecanicamente o relógio de bolso, constatou que ainda era 04h:00.
Ao fazer preces de agradecimento ao Criador pelo dom da vida, rogou-lhe contritamente que abençoasse o seu dia. Na cozinha, sua esposa já fizera o café, fritara ovos – e o cuscuz estava quase pronto.
Ao se dirigir ao toalete para as abluções matinais, José observou que, na parede da sala, iluminada parcamente por um candeeiro, encontrava-se imóvel, mas, com as asas bem distendidas, esbanjando rara beleza, uma borboleta preta gigante. Sorriu intimamente, deveras satisfeito, por que sabia que aquilo iria lhe trazer muita sorte.
A refeição matinal, entremeada de uma conversa amena com Maria, sua jovem e bela cônjuge, quando lhe explicou detalhadamente os procedimentos da viagem que encetaria até Crateús, fora degustada, por ele, com apetite incomum.
Trajando blusa e calça cáqui, impecavelmente engomadas pelas mãos hábeis de D. Pretinha, sua figura adquirira maior expressão quando, ao se despedir da sua mulher, num abraço carinhoso, pôs o reluzente quepe na cabeça, saindo de casa sem pressa rumo à estação.
Pelo caminho, José encontrou alguns conhecidos, também madrugadores contumazes, pela imposição do trabalho, cumprimentando-os efusivamente, como de praxe fazia, tirando até um dedo de prosa com alguns deles.
Ao se aproximar da gare de Camocim, num passo cadenciado, assobiando perdidas canções, de coração feliz, ouviu o ronronar característico da velha Maria Fumaça, que, toda empertigada, mostrava-se faceira sob o clarão da lua cheia, preparando-se solenemente para devorar milhas, incensando tudo à sua volta.
Ao chegar ao recinto, viu de pronto o agente ferroviário, amigo seu, que o esperava, ao lado do carro de bagageiro, ajustando algumas demandas, com a autorização oficial para que José pudesse conduzir o paquete. Assim, desejando-lhe sucesso, entregou-lhe o almejado documento.
Ouviu-se a última badalada do sino! O trem resfolegou forte quando o foguista pôs mais toras de lenha na fornalha, e a água do tênder foi transferida para a caldeira, convertendo-se em vapor o calor dos gases, gerando, dessa forma, a pressão necessária para as válvulas direcionais, e daí para os cilindros, acionando as rodas motrizes da locomotiva, com o operador da máquina a postos, aguardando ordem de sair.
Finalmente, a Maria Fumaça começou a andar, depois galopar, correr. À medida que ganhava velocidade, com o posicionamento da barra radial perto do mancal do quadrante, encurtando cada vez mais o período de tempo no qual se permite que o vapor dê curso ao pistão, José, impassível, de olhar atento, se posicionara propositadamente perto do vagão derradeiro do comboio, desfrutando interiormente da magia grandiosa daquele instante fugaz.
E quando o trem quis voar, rumo ao sertão, ele, correndo, saltou espetacularmente da plataforma para dentro dele, arrancando aplausos e vivas dos presentes, que a todo custo queriam saber quem era aquele condutor tão ousado e genial.
Seu nome: José Ferreira dos Santos.
Profissão: Chefe de trem.
Meu pai.
*Professor e Escritor Camocinense